sexta-feira, dezembro 19, 2003

Plágio de Jorge Amado

SANGUE E AMOR NA BARRA DO MAR

A Rua fedia mais que que as tripas de peixe esparramadas na barra, putrefazendo-se ao luar. Noite alta.
Nada de peixes nas bancas nem homens gritando barganhas. Nada de mulheres comprando, negros zoando e desejando as coxas e bundas grandes das mucamas... nada, só as marolas preguiçosas lavando a beira do cais e, lá longe, ondas de maré cheia estrondando nos corais.
O mercado era triste à noite.
Ainda assim, fedorento e amaldiçoado, o porto era vivo e o luar do cais era o mais lindo da Bahia, como se a lua fosse puta fina a que o cais sujo fizesse jus, por pura paixão. Os pescadores sabiam disso, e não trocavam as proas dos saveiros nas noites de amor.
O ar salgado e o cheiro forte provocam um sensação estranha, entre a repugnância e o instinto. A vida era aquilo: forte, doce, salgada e incômoda.
Negro Sávio sentiu amargar na garganta um soluço retido. Noite de lua cheia era difícil segurar a lembrança, e o choro vinha com tudo.
Firmou o encordoamento do mastro e reteve, mais uma vez, seus músculos travados no repuxo da corda, como se prolongar o esforço aliviasse a alma dolorida. Soltou, estava firme, não havia mais nada o que fazer no barco, não havia mais carga para descer, nem amarras nem nada, o barco já descansava, sonolento no balanço da barra. Sobrara ele, a lua e a tristeza.
Luana vira Sávio atracar no porto. Todos os dias corria os olhos buscando o saveiro vermelho, porque sabia que aquele barco fora pintado assim em homenagem ao sangue derramado na peleja com o rival e a esposa traidora, a paixão que traíra o mais forte dos marinheiros, que amargurava o coração do mais nobre dos homens. Reza a lenda que sávio usou o próprio sangue para pintar o barco, o sangue que correra do único golpe bem sucedido do seu oponente na luta em que perdeu a vida.
Sávio era lenda e luana gostava das lendas.
Pulou a janela sem saber de onde havia tirado coragem. Que se danasse seus pais, queria mesmo era ver o Negro Sávio.
Desceu ao porto, o vestido brincando com o vento, os olhos esbugalhados de adrenalina.
Sávio a viu de longe, estava acostumado a ver corais e tempestades no mar. Mas não era coral nem tempestade, era brisa, era a filha de João de Olegário. Estranhou a menina na rua, em plena hora da esbórnia, dos cachaceiros e das messalinas.
Luana parou de longe, namorando o vulto de Sávio com seus músculos reluzindo a lua, trepado no barco, uma lenda viva, o netuno do cais do porto.
Sávio gritou para saber o que era, se era emergência, se o pai dela estava bem. Com o coração aos pulos ela paralisou, não sabia que estava sendo vista. Mas respondeu. Aproximou-se, o negro sem entender o porque, sentiu um calafriu na espinha com aquela voz, a menina estava linda e brilhava o viço da puberdade.
Sem uma palavra e com o coração aos saltos, luana se aproximou. Apontou a pintura do barco e perguntou a Sávio:
- É verdade?
Sávio sabia o que ela queria dizer, e a amargura das lembranças passou correndo de volta pelos seus olhos.
-Foi!
A taquicardia aumentou enquanto se aproximava, ficou na ponta dos pés e sentiu o calor do negro... seu corpo reagiu de imediato. Levantou a mão direita e acariciou o rosto do homem.
Entre lágrimas e palpitações, amaram-se na madrugada, sobre a proa de um passado indiferente... e a lua os acompanhou.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Duas crônicas em dez minutos

"Bilhões e Bilhões"

Uma correntenza infindável de anônimos. Bilhões e bilhões.
A humanidade é numérica, coletiva, impalpável. Os indivíduos adormecem no leito da multidão.
Cada olhar um pensamento, centenas de frases soltas, vidas, dor, alegria, tudo absorvido pela enorme maré humana, tudo transformado em um ruído único e constante, tudo convertido em decibéis e misturado ao som das máquinas, motor de carro, compactadeira, freio de ônibus.
Cada alma uma vida, mas toda vida alimentando a  necessidade coletiva de fluir.
Até que algo aconteça.
De repente, bum! Acontece.
freios, gritos, pânico! sacolas no chão, sangue no asfalto.
Eis que da angústia, renascem os seres humanos: Puros, sensáveis à  dor. E então brotam os indivíduos, da necessidade de compartilhar a vida.
E o coletivo ganha outra dimensão.

Adoro andar pelo centro da cidade.

Pele

Levanvantou-se do nada, tão decidido que empurrou a cadeira de rodinhas que saiu girando por uns bons centímetros.
Baixou a cabeça mas não o olhar. Não se sentia mais um idiota naquele terno. Era ele e mais nada.
Caminhou até a mesa dela e cada passo era uma libertação. Seus olhos faiscavam e eram pura insensatez.
Ela ergueu a cabeça, esboçou o sorriso usual e já ia voltar ao trabalho quando percebeu que ele estava vinha para si e estava diferente, avançava em sua direção. Sem desvios, sem paradas, como se não existisse mais ninguém ali. O que seria? o que ele queria?
Passou pela mesa dela, com os olhos fixos nos seus degustou por meio segundo aquele ohar de dúvida. Fez sinal com a mão para que ela o seguisse.
Olhou para os lados buscando entender, não havia explicação, não havia motivos. Todos trabalhavam e não havia testemunhas para aquela aberração da rotina. Ficou inerte por mais meio segundo, mas a urgente curiosidade a acordou do choque.
Quando virou-se, ele já avançava pela sala. Uma mão no bolso da calça, a outra, livre, preparava-se para empurrar a porta da salinha de reuniões. Estranho, ele parecia muito à  vontade. Ela naquela situação totalmente esatranha, e ele tranquilo.
Apertou o passo e, enfim, entrou na sala. Ele encostado na parede, de braços cruzados e olhos voltados para ela, sério.
Pensou em perguntar alguma coisa para normalizar a situação, mas ele não permitiu:
_Feche a porta!
_Como assim? e tentou refazer o ar de dúvida para desfazer o medo da situação. No fundo, já sabia o que ele queria. E seu olhar era tão firme, tão forte. Tentou dissimular.
Avançou na direção dela, enfiou as mãos nos bolsos e fez cara de ironia para confrontar a sua dissimulação.
Não conseguia de nenhum modo recuperar a compostura, não sabia qual "tipo"deveria fazer naquele momento, sentiu-se totalmente transparente e por isso irritou-se.
_Eu disse para você fechar essa porta e deixar lá fora esse seu joguinho.
Agora desconcertou-se totalmente, e, embora aquele momento requeresse indignação, não conseguiu esboçar qualquer palavra:
_Mas, mas... o quê?
_Todo gesto seu é uma dança para seduzir meus olhos, toda frase sua é uma deixa para eu me perder ou me torturar, todo movimento de sua boca imita um beijo e você sabe que penso em beijá-la. Isso tudo é quase imperceptível... mas eu vejo.
O que você nâo quer que eu veja é que isso é de propósito para a sua diversão, mas eu já sei.
Só não consigo saber o que você quer, mas aqui estou, a meu modo, sem dissimulaçãos, dizendo o que eu quero... e eu quero você.
Empalideceu de vez, o raciocínio quase parou. Que droga! o idiota conseguiu desconcertá-la de verdade.
Não havia saí­da, não havia testemunhas, não havia como resgatar o controle da situação.
Virou-se de uma vez, decidida a sair ou gritar, mas... parou. Os olhos estavam tão certos, tão instintivos, provocantes...
Virou-se novamente para ele e, suavemente, fechou a porta, aproveitou este movimento para resgatar o auto-controle.
Antes de cerrar os olhos, sentiu o braço dele envolver sua cintura... e a pele fritando.

quinta-feira, novembro 27, 2003

Maioridade Penal

Vou continuar na minha posição de mero apresentador da discussão sobre Comoção popular X coação legal como forma de redução da criminalidade.
Peço desculpas por não adentrar o mérito da questão. Não é por falta de opinião, mas, pelo contrário, por puro cansaço acadêmico, afinal, este é o tópico constante de minha discussões e minha área de interesse no Direito.
Só sinto que não posso deixar a oportunidade esfriar, afinal, o calor da imprensa dura pouco e o povo esquece rápido. O perigo é que estes conceitos pré-formados como o de que "o aumento da punição pode inibir a criminalidade" acabam sedimentados por pessoas que buscam, no consenso popupular as opiniões mais oportunas para incluir no seu discurso e se firmar no gosto geral do eleitorado.

O assunto ainda é sobre o caso do casal adolescente que foi assassinado.
Vejamos o que pensa o Lula:

"Lula é contra redução da maioridade, mas admite revisão do ECA"

SÃO PAULO (Reuters) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta quarta-feira em Brasília que é contra a redução da maioridade penal, por não ser "uma solução mágica", mas admitiu a possibilidade de revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
"Eu confesso a vocês que sou contra (a redução da maioridade penal). A cada vez que acontece um crime desses que choca a população começam a se apresentar soluções mágicas. Não tem solução mágica. A pena de morte não é solução mágica, não foi em nenhum país onde foi criada, a redução da maioridade não é solução mágica."

Nisso eu concordo com o Presidente.

sexta-feira, novembro 14, 2003

kick off the BALDE

I need some vacations.
Nessessito de vacaciones,
Ehgherostab fhüwerestish,
Presisô d' fêrriás,
it nit san chin gô rô,
kara karamba kara kara ô,
thussand syyiiinerush,
mi parolas esperantom
El pueblo vencerá
Aus zein drein FFFacation,
#%&&* §""OO
01 01 10 01 10 10 01


Eeeeeu.....(arf arf arf) pre.... pre... preciiisss preciso de.... umas.... féééé....

segunda-feira, novembro 10, 2003

Seis anos.

Seis anos!!
Criança de seis anos é para brincar, não pensar em nada e se divertir.
Criança de seis anos é para estar na pré-escola, ter turminha e provocar a turminha das meninas.
Criança de seis anos é para sentir-se totalmente dona do mundo, ainda que seu mundo seja a casa, os brinquedos, desenho animado e os amiguinhos.
Criança de seis anos é para não ter ambição nenhuma, além daquele carrinho bacana ou daquele boneco legal que passou na TV.
Criança de seis anos é para encher a casa de alegria, falar sem papas na lí­ngua e fazer pirraça.
Criança de seis anos é para acreditar em super-herói, bruxa e papai-noel.

Não, criança de seis anos não é para trabalhar de "aviãozinho" para traficante, nem morrer de tiro. Mas morreu!

É surreal demais, mas morreu.

É deprimente demais, mas morreu.

Toda palavra me escapa agora, mas restariam mesmo de todo inúteis. De que elas serviriam? Para acusar o maquinário social e suas falhas cruéis? Para criticar a aceitação humana do capitalismo indiscriminado? Para condenar sua absurda capacidade de não dividir? Para falar de nós, de nossa inércia covarde?

Não, de nada serviriam as palavras agora. Já rogamos sobre nós todas as pragas e maldições que a sociedade poderia: Deixamos mais uma criança morrer.

Aos que crêem em Deus, fiquem certos: neste momento seu peito explode em dor e suas lágrimas são sanguíneas e amargas. Sua tristeza é ira contida e esta ira se voltará contra nós.

Estamos condenados.

sexta-feira, outubro 31, 2003

Rodrigo

É uma estranha coincidência, não sei se tenho muitos amigos que se chamam Rodrigo por uma afinidade qualquer com o nome ou se a quantidade de "Rodrigos" no mundo é tão absurdamente grande assim.
O fato é que conheço uma infinidade de exemplares desta espécie. E tem Rodrigo para todo gosto.
Rodrigo não é um daqueles nomes que marcam as pessoas, tipo: todo "André" é assim, todo Carlos é assado, etc... "Rodrigo" pde significar muita coisa. Na minha sexta série, cheguei a ter 11 colegas Rodrigos na Sala. O sobrenome deles era a identidade pessoal.

Só na minha rua tem dois: um totalmente malandro, esse é meu amigo de infância; o outro, o oposto, um cara certinho.
É, certinho. Não estou ridicularizando o cara, só atestando a sua conduta, afinal ele de fato é um cara correto, coerente, um desses que põe qualquer um no chinelo em termos de organização e cuidado.

Desde pequeno vejo o Rodrigo na minha rua. Meio gordinho, calado, tí­mido, branco, ligeiramente vesgo e correto, muito correto.
O pai dele tinha uma pequena oficina de conserto de eletrodomésticos e afins na garagem. Do pai do Rodrigo não me lembro muito bem, sei que ele devia ser um cara determinado. Metódico e determinado, afinal de contas, ficar tentando corrigir o mecanismo de uma enceradeira aposentada duas décadas atrás não é para qualquer um, ele o fazia. O pai dele era daquele tipo que chamam de curioso, mexia mexia até consertar.
O Rodrigo estava sempre lá, na oficina. Calado, atento. Aprendendo desde cedo que os mecanismos foram feitos para funcionar, ao contrário do que geralmente penso.

Mas o pai do Rodrigo se cansou cedo das geladeiras e deixou Rodrigo, oficina, esposa e filha pequena e para consertar qualquer coisa no céu.

Estranho. Era o Rodrigo quem ia cuidar da casa. Um cara da minha idade. Mas eu não tinha qualquer dúvida de que ele era o cara certo para assumir responsabilidades tão grandes. Era como se o anjo torto de Drummond tivesse dito a ele: _Vai, Rodrigo, vai ser certo na vida.

Ele cuidava de tudo com tanta atenção e com tanto sigilo que até incomodava. No bom sentido, mas incomodava.

Eu tive uma Caloi 10, aquelas bicicletas antigas de corrida, a Janaí­na. Só quem tem caloi 10 sabe a emoção de pilotar aquilo, o Rodrigo tinha.

Não é confortável, é para correr. Corre tanto que um dia a Janaína me atirou no asfalto a 60 km por hora querendo, a todo custo, me depilar sem anestesia. e Conseguiu. Depilar e escalpelar.

Depois do acidente, a Janaína nunca mais foi a mesma, empenou toda. E a do Rodrigo intacta.
Rodrigo cuidava daquela bicicleta tanto, mas tanto que eu tinha certeza que qualquer parafuso do seus intrincados mecanismos de marcha era mais limpo do que minha própria pele. E ele a tratava como uma donzela. Conduzia-a pelo guidom até a avenida e só então assumia a posição de comando e começava a pedalar.

Um dia fiquei sabendo que a bicicleta do Rodrigo estava a venda. Me candidatei de imediato e comprei a Janaí­na II em três parcelas. Pronto. Estava decretada a minha submissão. À  partir de então sempre deveria satisfação ao Rodrigo.

Anos e anos de uso intenso, algumas pecinhas danificadas fizeram encostar a Jana, mas o Rodrigo estava lá, vigiando minha consciência. Desmontei a bicicleta todinha, peça por peça e pendurei na área, querendo ou não, abandonada.

Desde então, sempre passo pelo Rodrigo de cabeça baixa. Eu fracassei.

Quando ele comprou um fusquinha eu ainda não tinha carro. Quando comprei o meu carro, que era bem melhor que um fusca, Rodrigo tinha o melhor fusquinha da região. Agora tenho um carro novo, simples mas novo; Rodrigo tem um Chevette 92.

Outro dia passei enfrente à casa do Rodrigo e ele estava esquentando o seu carro que, é claro, fazia gosto de tão impecavelmente limpo e bem cuidado. Ele fez sinal de luz, me cumprimentando. Fiquei absurdamente constrangido com aquela titica de pombo na lataria fazendo aniversário de uma semana.

Rodrigo é motoboy e eu funcionário público, por isso o mundo anda tão invertido.

Se tiver chance, um dia ainda hei de dizer a ele: _Cuidado, rapaz! não vá morrer cedo como seu pai. O mundo precisa de mais Rodrigos como você.

quarta-feira, outubro 29, 2003

Summer

Dias quentes como esses, pedem calma. Devagar para não suar ou se cansar demais.
Tardes quentes como essas pedem amigos, água-de-côco e muita atenção à vida que passa devagarinho ao pôr-do-sol.
Noites quentes como essas pedem paixão, corpos ardentes e janelas abertas para a brisa entrar.

segunda-feira, outubro 20, 2003

Minha Terra

Liguei para Pai ontem, ele estava triste. Minha terra amarga a seca. Mais uma.

A terra.

A terra seca.
E o céu, rígido, impassível, não chora.

E a terra torra.
E o homem forte, perseverante, trabalha.

E a terra dorme.
E as mulheres magras, velhas carregam lenha.

E a terra morre.
E as crianças barrigudas, ingênuas, pegam fogo.

E a terra dura.
E o povo triste, fiel , faz novena.

E Deus nada fala.


A terra forte.
E o céu triste, fiel, pega fogo.

E a terra ingênua.
E o homem rígido, impassível, faz novena.

E a terra magra.
E as mulheres barrigudas, fiéis, trabalham.

E a terra pega fogo.
E as crianças, tristes, velhas, morrem.

E a terra nada fala.
E o povo duro, perseverante, torra.

E Deus não chora.

Eu choro.
Uri.

terça-feira, outubro 14, 2003

Post Novela em 1ª pessoa - O SILÊNCIO

Capítulo dois: Vários de Mim. Ou o "eu" gollum .


Lembro-me que o primeiro livro que li com a TV calada foi "O Físico" de Noah Gordon. Um livro realmente fantástico. Mas não era o bastante, eu realmente precisava de estímulos diferentes. Precisava entreter todos os sentidos.

Natural! pensava, quando me surpreendia na mais absoluta quietude, parado, sentado na mesa de jantar em silêncio para acompanhar os passos e as vozes dos vizinhos nos apartamentos de cima e de baixo. Voyeur? Não, absolutamente, aquilo não era fetiche... era... não sei ao certo. Uma necessidade, um vínculo. Talvez um fetiche sim. Mas não havia qualquer maldade. Era preciso ouvir uma outra vida que não aquela minha, que eu já sabia de cor, ou pensava que sabia.

Era estranho o que eu sentia. Era como se fosse íntimo de todas aquelas pessoas de quem conhecia somente as vozes e os passos. Era sem dúvida um divertimento entre o requintado e o abominável. Imaginar faces, gestos, expressões. Imaginar a carga de sentimento daquelas pessoas dosada em cada palavra, cada tom de voz daqueles que me circundavam acima e abaixo.
Sentado em uma cadeira da sala, brincando de professor Xavier, de olhos fechados, apagava as paredes, o chão e o teto e então não havia limites, era uma grande célula com várias vidas, vários hábitats com exemplares diferentes de uma mesma espécie e eu... existindo sem existir no meio daquilo. Invisível, etéreo.


O sexo do casal vizinho me irritava mais que suas brigas. Não, não queria os demônios alheios. Se houvesse de conviver com fantasmas, que fosse com os meus. E como eu os tinha, e como eu passava a percebê-los.

No exato momento em que chegava em casa, defrontava com aquela multidão inconseqüente que havia trazido. Os "Eus" que criara para enfrentar o dia. Os personagens de mim compostos para cada cena daquele roteiro maluco. Uma fala para cada personagem, uma vida para cada expectativa. À noite eram carnais os personagens, todos me encarando, questionando a quem eu dedicaria mais vida. Não sabia. Sequer havia planejado criá-los.

Agora fugia deles como quem foge da luz. Procurando os cantos escuros, os pensamentos distantes. Fazendo barras e abdominais de madrugada para não escutar os demônios externos e internos a mim. Esquivando pelo meu AP, no escuro, tentando não esbarrar em nada. Lendo com o abajour quebrado, tentando ressuscitar os traços há muito esquecidos do curso de desenho de banca de revista, enfim... esgueirando-me pela minha toca como alguém que eu havia acabado de conhecer: Gollllummm!!!!! My prrrrrrrreeecccccciouuuuussssssssssss.
Me sentia tão cru e podre como ele. Dupla personalidade..

Eu não precisava ouvir a mais ninguém. Eu tinha a mim...

Eu queria exorcizá-los, ignorá-los, mas sem música, sem TV, a sós com tantos demônios eu poderia enlouquecer...mas eu ouvia melhor.
tic tic tic tic... pequenos ruídos. Ínfimos. Carreiras curtas e rápidas por todo lado.

Elas estavam lá...

sexta-feira, outubro 10, 2003

Post-Novela em 1ª Pessoa - O SILÊNCIO

Capítulo 1: O ELO PARTIDO.

Um dia a TV da minha casa ficou rosa. Alguns dizem que era vermelha, mas eu afirmo: rosa!

Já nessa época todos os meus irmãos tinham se formado, mudado e fiquei sozinho, senhor do meu reino num apartamento de 3 quartos que era o posto avançado dos meus pais no interior. Acampamento de guerrilha para os filhos estudarem e se virarem na vida.

Minha irmã vinha e voltava pelo Brasil, enquanto isso eu ficava com seu rádio, computador e grande parte dos excelentes CD's que tinha. Grande Robert Cray...

Não foi de repente, mas pouco a pouco que as coisas aconteceram. Não posso medir a proporção da transformão que as conseqüências me provocaram. É estranho, sempre que tento me recordar a seqüência dos acontecimentos me sinto perdido no tempo. É como se tivesse passado num buraco negro e as partículas de luz se desviado em direção ao astro supermagnético. Minha não do tempo se desfaz e me sinto meio confuso. Mas vou tentar organizar os fatos.

Minha irmã se mudou em definitivo para Palmas (TO) e, até então tudo dela estava aqui. Era justo que ela levasse, apesar da minha tristeza, quase tudo que me ligava ao mundo. Lá se foi o computador com a velha novidade da internet lentinha, o que até então era comum. Depois foi a vez do toca fitas em que escutava todo o meu arsenal acumulado ao longo da vida, tudo em K7: Vinícius de Morais, Dire Straits... tudo o que gostava e guardava há anos...

Restou só mesmo a velha TV e o videocassete. O ví­deo estragou. Com o soldo de estagiário da prefeitura e a parca mesada para sobrevivência, encostei o Panasonic quatro cabeças que tanto serviço prestou. Sem perspectivas de retorno.

Já não dispunha de muito tempo para ingerir todo o ópio que a TV aberta oferecia. Com doses menores, meu intelecto começava a dar sinais de recuperação.

Um belo dia, não sei em que programa, não sei em que horário, a Philco Hitachi 19" ficou, irremediavelmente, rosa. Não me perguntem muito o "porquê" nem como aconteceu. É exatamente isso: tudo rosa. O Cid Moreira, a Letícia Spiller, As menininhas da malhação (quando era em uma academia e o nome tinha a ver com o programa) até minhas musas... todo mundo que eu conhecia, o mundo em que praticamente vivia e acreditava ficou ironicamente rosa como um algodão-doce.

Não, eu não sou daltônico nem doido. Só sei que as outras cores da minha TV se cansaram e foram para o céu das cores de televisão, ou talvez tenham virado "Tele-Tubbies"... sei lá.
O que era tão real, tão palpável para mim estava ali, totalmente lúdico, ironicamente irreal. Rosa, como as coisas mais artificiais... como aqueles suspiros de porta de escola. Meu Deus! toda a realidade daquilo se expunha a mim de maneira tão divertida: "o mundo cor-de-rosa da televisão" era realmente ROSA.
A futilidade daquela vida se revelava de maneira espantosa. As novelas chegaram ao ponto de se tornar insuportáveis de tão Doces, fúteis e artificiais.

Tudo aquilo, enfim, parecia uma grande viagem de ácido: "Lucy in The Sky is a Diamond".
Era como uma ressaca de vinho doce, tudo estranho demais, doce demais. Aquela ausência de cores para enganar meu cerebelo, aquela "irrealidade" estabelecida de forma tão absurda nos meus olhos. Já¡ me sentia mal, mas não conseguia me libertar ainda.

Até que um dia, o que era doce, digo "rosa" se acabou. Nem imagem rosa, nem som nem nada. Queimou-se meu último e precário elo com a humanidade urbana.

Um vazio. Um lapso. Uma imensidão se revelava: meu apartamento, sem ruídos eletrônicos.

O momento da ira foi logo seguido de um alívio muito grande. Me sentia livre, desincumbido dos cultos diários e da hipnose perversa daquele ingênuo aparelho. E me propus firmemente a não consertá-la. Buscaria a libertação, leria os tantos livros que minha mãe havia deixado, os textos da minha irmã, os clássicos pesados e negros que se ocultavam na nossa prateleira. Enfim, enfrentaria, de uma vez por todas, aquelas ameaçadoras e empoeiradas brochuras que se acumulavam acima e pelos lados do extinto aparelho televisivo.

O propósito era firme, mas o medo incalculável.

A adrenalina da novidade não me permitia imaginar o futuro que me aguardava.
Nem vocês.
(aguardem o próximo capítulo)

terça-feira, outubro 07, 2003

Justiças sobrepostas.

Crianças, balas e sangue.

Ontem, segunda-feira, uma destas crianças que vendem balas em ônibus, numa disputa pelo território, agrediu um colega - ou rival, que era outra destas crianças que vendem balas em ônibus. A briga terminou com um deles caído, ensangüentado, com um corte profundo no pescoço.
A cena toda se deu no ponto de ônibus que fica exatamente ao lado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, onde trabalho.

Uma criança deu uma facada em outra criança na frente do Tribunal de Justiça por causa de algumas balas. Algumas balas. Uma criança. Facada no pescoço. Criança...

Parece tema para triller de violência, mas é a real.
Parece comum demais, cotidiano e rotineiro na maratona urbana mas não é. É terrível, que ninguém se deixe enganar.

É tão assustador, tão alarmante, de uma dimensão tão grande de medo e dor que quase chega a ser ilusivo, mas é real demais.

Me perdoem por ser tão repetitivo, me desculpem o lugar-comum do tema mas é isso mesmo que me impressiona e amedronta. Medo de tornar tudo isso comum.


Justiças sobrepostas.

Não é novidade nem nenhum segredo que a exclusão econômica promove exclusão social e que à margem desta sociedade criou-se outra. Com indivíduos de menos poder aquisitivo, com menos eficácia das instituições de educação, maior dificuldade de acesso à saúde, enfim, menos cidadania.

E não é novo, também, que nesta sub-sociedade, resultado óbvio da lógica econômica, tenha-se adotado todo um conjunto moral bastante diferenciado dos nossos padrões seculares.

Valores diferentes, meios, regras e perspectivas completamente distintas. Um só homem.

Nestes meios, a violência é usual. Não só para o criminoso que visa resultado econômico, mas para todos os que habitam o meio: o trabalhador que sustenta a família, a lavadeira que alimenta os filhos, enfim. A violência em determinados momentos chega a ser ferramenta de sobrevivência, já que o código de ética é diferente e já que ali não é fácil se chegar à justiça e a polícia parece ter uma única função: proteger o lado de cá. O tráfico por perto, o acesso às armas mais fácil que aos livros, o preconceito pela condição. A vida se impõe, é preciso sobreviver pelo ou menos até sair dali e até lá que se aplique a "lei do cão" ou se é vitimado por ela

Por essas e outras é que se chega ao ponto de uma criança matar outra criança. Elas conheceram violência, aprenderam violência, viveram em meio à violência e aprenderam que daquela forma conseguiriam fazer valer seus direitos no mundo em que viviam.

Quanta ironia naquele fato. Duas crianças, símbolo universal da esperança, demonstravam exercer a justiça da sua sociedade, a justiça que aprenderam a 10 metros de onde a nossa justiça concentra todo a sua simbologia.

Duas justiças sobrepostas, duas realidades contrapostas.

Quanta injustiça, quanta tristeza.



Este post não é para ser "bonitinho", mas irei consertá-lo amanhã, quando estiver menos cansado e menos impressionado.

quarta-feira, outubro 01, 2003

Lo que siento

"Outrora eu era de aqui e hoje regresso estrangeiro. Prisioneiro do que vejo e ouço, velho de mim! já vi de tudo. Ainda o que nunca vi nem o que nunca verei. eu reinei no que nunca fui."

Fernando Pessoa me falou isso ontem, na voz de Maria Bethânia. "Velho de mim"... o que será sentir-se velho de si mesmo? eu sinto. Não cansaço, mas rebeldia. Cansaço esgota, rebeldia pede mudança.
E tudo lembra tudo, portando desenterro mais um para essa prosa furada: erga-se Raulzito, com sua "Metamorfose Ambulante" , pois é exatamente o que somos todos, porque toda a nossa razão se esvai na incerteza do que acabamos de afirmar e varia na circunstância próxima, aquela imprevisível.
Mas somos tão pedantes.

"Minha vida é um palco iluminado
eu vivia vestido de dourado.
Palhaço das perdidas ilusões!"

Ah! Bethânia... isso é tudo o que sou. Eu, você e o resto desta racinha humana não passamos de pequenos atores, encenando uma peça sempre brega demais, dirigida por nós mesmos, mas escrita sabe-se lá como e por quem.
Somo afirmativamente incertos. Cremos demasiadamente no nada, já diria Nietzsce. Fodam-se os túmulos que violei! hoje tô de licença poética (roubada e fria) e não me permito acreditar em nada que contenha qualquer conteúdo racional.
Somos tão paradoxais quanto mesquinhos e acreditamos conter o universo em nossas teorias. São tantas e tão precisas que desconfio de todas.

Mas hoje não, hoje não quero inteligir o mundo.

Hoje o que quero é sentir. Sentir ao extremo.
Quero impulsos e enzimas, neurônios e hormônios.

Quero aqueles olhos verdes, aquela boca carnal. Quero seu perfume e sua pele e sua voz. E assim unidos, deixarei me esvair de toda a razão e que meu coração,acelerado, me conduza à verdade.

sexta-feira, setembro 12, 2003

O Homem simples.

Quarta-feira fui ao fórum e uma cena não me saiu da cabeça.
Estava no corredor das varas de família com minha orientadora e uma colega.
Elas discutiam qualquer coisa e eu só aguardava, iria assistir a audiência.
Me vi olhando aquelas pastas, papéis, ternos e tailler's, aqueles rostos muito decididos, aqueles sorrisos corretos, as palavras elegantes, os gestos precisos.
Fiquei feliz em pensar que por mais que eu freqüente este universo, continuo me sentindo totalmente estranho a ele. Não aquela estranheza de quem não está à vontade, e sim aquele afastamento de quem compreende mas não se entrega.
São tantas pessoas, tantos papéis, tantas horas marcadas, é como se fosse uma fábrica de palavras e a cada palavra parece ser dado um valor absurdo.

É como se as pessoas que ali circulassem achassem que o mundo realmente só existe porque elas estão lá, operando na retórica... enfim, no nada, no vazio. É como se elas enxergassem um sentido muito óbvio naquela abstração toda.
Um nada que envolve muitas vidas, que as aprisiona, decide, separa, obriga, manda fazer, enriquece, empobrece, constrói, destrói.
Deve ser um nada muito importante.

Um homem velho, não um velhinho, mas um senhor já bem vivido, negro, baixo, magro e com um óculos no rosto, roupas simples, daquela simplicidade de quem não tem como não ser simples. Com os sapatos bem maiores que seu pé, sujos da poeira de quem vem de longe, acompanhado de uma menina com seus cinco anos e de roupinhas também bastante sujas caminhou pelo corredor com um passo rápido até parar enfrente a uma das secretarias. Olhou a porta, as pessoas que estavam lá dentro, olhou o número da sala, fez que ia entrar mas parou na porta, esbarrou como quem parece bloqueado por um instinto qualquer, como que envergonhado pelas roupas que vestia, resignado, parou. Avançou com a cabeça tentando se mostrar sem ser visto, fazia um discreto sinal com as mãos tão discreto que ninguém o percebia. Tentava erguer os braços mas freava o movimento no meio, olhava para os lados, para a criança e desenrolava um papel todo dobrado que trouxera cuidadosamente instalado no bolso. Pegava no papel com as pontas dos dedos, como que temeroso.
Avançava com a cabeça e acompanhava com o tronco, meio mandingueiro até, entre o sem jeito e o risonho, com a mão posta junto ao peito conseguiu chamar a atenção da oficial que foi até a porta atendê-lo.
Era estranho vê-lo, era como se eu não quisesse que ele estivesse ali passando por todo aquele constrangimento. Ele era a representação do que todas as pessoas ali tinham esquecido: um homem comum, um cidadão. Naquele momento, para mim, era um iluminado, um ser à margem de toda aquela burocracia, que se considerava simples demais para se envolver, que não queria incomodar, e sua simplicidade o salvava.
Senti medo de me ver acorrentado a toda aquela artificialidade e chegar um dia a passar indiferente a ele como a maioria ali o fazia (ou demonstrava faze).
Era ele, ali, olhando tudo como quem se sente fora da matrix, aquela criança ainda isenta de qualquer vínculo, os dois indefesos naquele mundo de papel.
Me lembrei de Kafka em "o processo", a estória inacabada em que os personagens eram envolvidos em processos absurdos, sem razão aparente, sem começo nem fim em que não importava qualquer fato ocorrido, o que importava era o processo, a tensão, a obrigação com a justiça, o assinar papéis, comparecer, depor, enfim, submeter-se a um poder que só existe porque existe a idéia dele. Lembrei-me de 1984 do George Orwell e da Matrix.
Me senti aprisionado e tive vontade de afastá-lo dali, rasgar aquele papel e dizer vá embora, o senhor está livre, leve esta criança e ensine a ser gente de carne osso, não um estereótipo hierarquizado, uma figura a mais neste enorme elenco ... gente de verdade que passava despercebido.
Nesta hora absurda tive um desconcerto. Me senti desconfortável no mundo, mas voltei os olhos e comecei a sentir pena daquelas outras pessoas: dos ternos apertados, dos apertos de mão voláteis, dos Ilustres medíocres, dos presusunçosos estudantes, da insegurança mal disfarçada nos rostos tensos, na mascara frágil de convicção; menos daquele senhor simples e acabrunhado que me traduzia a verdade.
Os papéis de uma senhora de idade sentada a meu lado caíram, era uma mulher simples, como aquele homem, peguei os papéis e entreguei em suas mãos. Com um sorriso espontâneo ela agradeceu: _Deus te abençôe! Por seu sorriso, me senti abençoado, eu existia.

terça-feira, setembro 09, 2003

Coisas de lua

Quem viu a lua?
Saí da sala porque a lua estava a meu lado, no céu das montanhas, insistindo em ser bonita, teimando em seduzir meus olhos e escravizar meus pensamentos.
Lua doida e linda, bola branca chapada e viva no céu.
Não tenho mais dúvidas, a lua é fêmea. Talvez a fêmea mãe, talvez a matriz de todo o paradoxo humano, Lua-vênus, Deusa da beleza e da paixão. Bem e mal em conflito, lua mulher que troca de roupa, vai embora, sorri e seduz.

Lua cheia, no meu sertão, faz da noite um dia. Bom pra caçar, bom para amar. Os pescadores do cais da Bahia, a Bahia de Jorge Amado, amavam na proa dos saveiros nas noites de lua cheia. Suas mulheres, sedentas de amor, provocadas pela lua-Iemanjá, sonhavam amar seus homens nas proas dos barcos em noites de lua cheia. Porque sua luz ilumina e oculta, mostra e esconde e assim faz jogo da paixão, dúbio, secreto, misterioso, instintivo. E é isso que a lua faz, é isso que a lua é.

Quem não sente a lua? quem não percebe a lua? quem nunca quis sorrir igual criança, uivar, quem nunca quis amar...

Lua, lua, lua, seu brilho em meus olhos desliza, seu nome em meus lábios flutua...