terça-feira, outubro 14, 2003

Post Novela em 1ª pessoa - O SILÊNCIO

Capítulo dois: Vários de Mim. Ou o "eu" gollum .


Lembro-me que o primeiro livro que li com a TV calada foi "O Físico" de Noah Gordon. Um livro realmente fantástico. Mas não era o bastante, eu realmente precisava de estímulos diferentes. Precisava entreter todos os sentidos.

Natural! pensava, quando me surpreendia na mais absoluta quietude, parado, sentado na mesa de jantar em silêncio para acompanhar os passos e as vozes dos vizinhos nos apartamentos de cima e de baixo. Voyeur? Não, absolutamente, aquilo não era fetiche... era... não sei ao certo. Uma necessidade, um vínculo. Talvez um fetiche sim. Mas não havia qualquer maldade. Era preciso ouvir uma outra vida que não aquela minha, que eu já sabia de cor, ou pensava que sabia.

Era estranho o que eu sentia. Era como se fosse íntimo de todas aquelas pessoas de quem conhecia somente as vozes e os passos. Era sem dúvida um divertimento entre o requintado e o abominável. Imaginar faces, gestos, expressões. Imaginar a carga de sentimento daquelas pessoas dosada em cada palavra, cada tom de voz daqueles que me circundavam acima e abaixo.
Sentado em uma cadeira da sala, brincando de professor Xavier, de olhos fechados, apagava as paredes, o chão e o teto e então não havia limites, era uma grande célula com várias vidas, vários hábitats com exemplares diferentes de uma mesma espécie e eu... existindo sem existir no meio daquilo. Invisível, etéreo.


O sexo do casal vizinho me irritava mais que suas brigas. Não, não queria os demônios alheios. Se houvesse de conviver com fantasmas, que fosse com os meus. E como eu os tinha, e como eu passava a percebê-los.

No exato momento em que chegava em casa, defrontava com aquela multidão inconseqüente que havia trazido. Os "Eus" que criara para enfrentar o dia. Os personagens de mim compostos para cada cena daquele roteiro maluco. Uma fala para cada personagem, uma vida para cada expectativa. À noite eram carnais os personagens, todos me encarando, questionando a quem eu dedicaria mais vida. Não sabia. Sequer havia planejado criá-los.

Agora fugia deles como quem foge da luz. Procurando os cantos escuros, os pensamentos distantes. Fazendo barras e abdominais de madrugada para não escutar os demônios externos e internos a mim. Esquivando pelo meu AP, no escuro, tentando não esbarrar em nada. Lendo com o abajour quebrado, tentando ressuscitar os traços há muito esquecidos do curso de desenho de banca de revista, enfim... esgueirando-me pela minha toca como alguém que eu havia acabado de conhecer: Gollllummm!!!!! My prrrrrrrreeecccccciouuuuussssssssssss.
Me sentia tão cru e podre como ele. Dupla personalidade..

Eu não precisava ouvir a mais ninguém. Eu tinha a mim...

Eu queria exorcizá-los, ignorá-los, mas sem música, sem TV, a sós com tantos demônios eu poderia enlouquecer...mas eu ouvia melhor.
tic tic tic tic... pequenos ruídos. Ínfimos. Carreiras curtas e rápidas por todo lado.

Elas estavam lá...

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