sexta-feira, dezembro 19, 2003

Plágio de Jorge Amado

SANGUE E AMOR NA BARRA DO MAR

A Rua fedia mais que que as tripas de peixe esparramadas na barra, putrefazendo-se ao luar. Noite alta.
Nada de peixes nas bancas nem homens gritando barganhas. Nada de mulheres comprando, negros zoando e desejando as coxas e bundas grandes das mucamas... nada, só as marolas preguiçosas lavando a beira do cais e, lá longe, ondas de maré cheia estrondando nos corais.
O mercado era triste à noite.
Ainda assim, fedorento e amaldiçoado, o porto era vivo e o luar do cais era o mais lindo da Bahia, como se a lua fosse puta fina a que o cais sujo fizesse jus, por pura paixão. Os pescadores sabiam disso, e não trocavam as proas dos saveiros nas noites de amor.
O ar salgado e o cheiro forte provocam um sensação estranha, entre a repugnância e o instinto. A vida era aquilo: forte, doce, salgada e incômoda.
Negro Sávio sentiu amargar na garganta um soluço retido. Noite de lua cheia era difícil segurar a lembrança, e o choro vinha com tudo.
Firmou o encordoamento do mastro e reteve, mais uma vez, seus músculos travados no repuxo da corda, como se prolongar o esforço aliviasse a alma dolorida. Soltou, estava firme, não havia mais nada o que fazer no barco, não havia mais carga para descer, nem amarras nem nada, o barco já descansava, sonolento no balanço da barra. Sobrara ele, a lua e a tristeza.
Luana vira Sávio atracar no porto. Todos os dias corria os olhos buscando o saveiro vermelho, porque sabia que aquele barco fora pintado assim em homenagem ao sangue derramado na peleja com o rival e a esposa traidora, a paixão que traíra o mais forte dos marinheiros, que amargurava o coração do mais nobre dos homens. Reza a lenda que sávio usou o próprio sangue para pintar o barco, o sangue que correra do único golpe bem sucedido do seu oponente na luta em que perdeu a vida.
Sávio era lenda e luana gostava das lendas.
Pulou a janela sem saber de onde havia tirado coragem. Que se danasse seus pais, queria mesmo era ver o Negro Sávio.
Desceu ao porto, o vestido brincando com o vento, os olhos esbugalhados de adrenalina.
Sávio a viu de longe, estava acostumado a ver corais e tempestades no mar. Mas não era coral nem tempestade, era brisa, era a filha de João de Olegário. Estranhou a menina na rua, em plena hora da esbórnia, dos cachaceiros e das messalinas.
Luana parou de longe, namorando o vulto de Sávio com seus músculos reluzindo a lua, trepado no barco, uma lenda viva, o netuno do cais do porto.
Sávio gritou para saber o que era, se era emergência, se o pai dela estava bem. Com o coração aos pulos ela paralisou, não sabia que estava sendo vista. Mas respondeu. Aproximou-se, o negro sem entender o porque, sentiu um calafriu na espinha com aquela voz, a menina estava linda e brilhava o viço da puberdade.
Sem uma palavra e com o coração aos saltos, luana se aproximou. Apontou a pintura do barco e perguntou a Sávio:
- É verdade?
Sávio sabia o que ela queria dizer, e a amargura das lembranças passou correndo de volta pelos seus olhos.
-Foi!
A taquicardia aumentou enquanto se aproximava, ficou na ponta dos pés e sentiu o calor do negro... seu corpo reagiu de imediato. Levantou a mão direita e acariciou o rosto do homem.
Entre lágrimas e palpitações, amaram-se na madrugada, sobre a proa de um passado indiferente... e a lua os acompanhou.

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