sexta-feira, outubro 10, 2003

Post-Novela em 1ª Pessoa - O SILÊNCIO

Capítulo 1: O ELO PARTIDO.

Um dia a TV da minha casa ficou rosa. Alguns dizem que era vermelha, mas eu afirmo: rosa!

Já nessa época todos os meus irmãos tinham se formado, mudado e fiquei sozinho, senhor do meu reino num apartamento de 3 quartos que era o posto avançado dos meus pais no interior. Acampamento de guerrilha para os filhos estudarem e se virarem na vida.

Minha irmã vinha e voltava pelo Brasil, enquanto isso eu ficava com seu rádio, computador e grande parte dos excelentes CD's que tinha. Grande Robert Cray...

Não foi de repente, mas pouco a pouco que as coisas aconteceram. Não posso medir a proporção da transformão que as conseqüências me provocaram. É estranho, sempre que tento me recordar a seqüência dos acontecimentos me sinto perdido no tempo. É como se tivesse passado num buraco negro e as partículas de luz se desviado em direção ao astro supermagnético. Minha não do tempo se desfaz e me sinto meio confuso. Mas vou tentar organizar os fatos.

Minha irmã se mudou em definitivo para Palmas (TO) e, até então tudo dela estava aqui. Era justo que ela levasse, apesar da minha tristeza, quase tudo que me ligava ao mundo. Lá se foi o computador com a velha novidade da internet lentinha, o que até então era comum. Depois foi a vez do toca fitas em que escutava todo o meu arsenal acumulado ao longo da vida, tudo em K7: Vinícius de Morais, Dire Straits... tudo o que gostava e guardava há anos...

Restou só mesmo a velha TV e o videocassete. O ví­deo estragou. Com o soldo de estagiário da prefeitura e a parca mesada para sobrevivência, encostei o Panasonic quatro cabeças que tanto serviço prestou. Sem perspectivas de retorno.

Já não dispunha de muito tempo para ingerir todo o ópio que a TV aberta oferecia. Com doses menores, meu intelecto começava a dar sinais de recuperação.

Um belo dia, não sei em que programa, não sei em que horário, a Philco Hitachi 19" ficou, irremediavelmente, rosa. Não me perguntem muito o "porquê" nem como aconteceu. É exatamente isso: tudo rosa. O Cid Moreira, a Letícia Spiller, As menininhas da malhação (quando era em uma academia e o nome tinha a ver com o programa) até minhas musas... todo mundo que eu conhecia, o mundo em que praticamente vivia e acreditava ficou ironicamente rosa como um algodão-doce.

Não, eu não sou daltônico nem doido. Só sei que as outras cores da minha TV se cansaram e foram para o céu das cores de televisão, ou talvez tenham virado "Tele-Tubbies"... sei lá.
O que era tão real, tão palpável para mim estava ali, totalmente lúdico, ironicamente irreal. Rosa, como as coisas mais artificiais... como aqueles suspiros de porta de escola. Meu Deus! toda a realidade daquilo se expunha a mim de maneira tão divertida: "o mundo cor-de-rosa da televisão" era realmente ROSA.
A futilidade daquela vida se revelava de maneira espantosa. As novelas chegaram ao ponto de se tornar insuportáveis de tão Doces, fúteis e artificiais.

Tudo aquilo, enfim, parecia uma grande viagem de ácido: "Lucy in The Sky is a Diamond".
Era como uma ressaca de vinho doce, tudo estranho demais, doce demais. Aquela ausência de cores para enganar meu cerebelo, aquela "irrealidade" estabelecida de forma tão absurda nos meus olhos. Já¡ me sentia mal, mas não conseguia me libertar ainda.

Até que um dia, o que era doce, digo "rosa" se acabou. Nem imagem rosa, nem som nem nada. Queimou-se meu último e precário elo com a humanidade urbana.

Um vazio. Um lapso. Uma imensidão se revelava: meu apartamento, sem ruídos eletrônicos.

O momento da ira foi logo seguido de um alívio muito grande. Me sentia livre, desincumbido dos cultos diários e da hipnose perversa daquele ingênuo aparelho. E me propus firmemente a não consertá-la. Buscaria a libertação, leria os tantos livros que minha mãe havia deixado, os textos da minha irmã, os clássicos pesados e negros que se ocultavam na nossa prateleira. Enfim, enfrentaria, de uma vez por todas, aquelas ameaçadoras e empoeiradas brochuras que se acumulavam acima e pelos lados do extinto aparelho televisivo.

O propósito era firme, mas o medo incalculável.

A adrenalina da novidade não me permitia imaginar o futuro que me aguardava.
Nem vocês.
(aguardem o próximo capítulo)

Nenhum comentário: