quarta-feira, janeiro 25, 2006

Oração vivida

Invado a madrugada lendo a noite com olhos tranquilos.
Pela janela, até a cidade me chega mais íntima. As luzes mais leves, os carros mais calmos.
Meu amor, que dorme na minha cama, desperta entre um sonho e outro, rouba meus olhos do livro e me estende o braço, preguiçosa, balbuciando com voz de sono que é para eu abraçá-la e dormir também.
A ordem impera com lógica indiscutível. Há tanta poesia neste momento que o livro perde qualquer sentido.
Ia fazer uma oração também, mas restou desnecessário. Há tanto amor aqui, que posso ver Deus sorrindo para nós e dizendo: boa noite!
Amém.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Estrada

(Trilha sonora: Secos e Molhados)
Quando caio na estrada é como se estivesse pedindo licença da minha própria vida. Abandono minha carcaça, crio meu próprio conceito de tempo, renovo o espírito e jogo fora os pensamentos que são velhos.
Há magia em uma viagem qualquer.
A mim não importa estar indo a um outro país ou ao centro da cidade. O que conta é o espírito que carrego quando saio de casa para ver as coisas. Sair é bom. Andar é bom.
Adoro andar pelo mundo, guiar meus olhos onde eles nunca estiveram, apreciar o belo e o feio, vencer distâncias, alturas, usar meu corpo para aquilo que lhe é tão primário e tão óbvio: o movimento.
Olhar paisagens me diverte. Seja pelo pára-brisa do carro, pela janela de um ônibus, de um avião, na amurada de uma balsa ou, simplesmente, de dentro do meu corpo em movimento, em uma bicicleta ou à pé, no alto de uma montanha, em qualquer lugar do planeta.
O que importa, em qualquer canto, é ser expectador do mundo, assistir a este espetáculo imenso.
Há algo muito forte na estrada. Algo que transforma, algo que transcende.
Minha vida é mais minha na estrada.

O movimento arranha minha alma com uma vontade absurda de sair, tira meu sono e incomoda meu corpo o tempo todo. Minha imaginação quer me arrastar, quer me levar para a estrada de novo, quer me lembrar o quanto sou autêntico quando lanço os pés no rumo de algo novo.

Mas a estrada alimenta a saudade e a saudade catalisa a paixão.
Então, haverão de perguntar, com fundamento: porque da estrada, então?
Para sentir a paixão mais forte. Para bebê-la em grandes doses, em um lugar bonito do mundo, com os olhos infestados de estrelas, com a cabeça mergulhada no universo, viajando na órbita dos beijos mais intensos, na infinitude das melhores lembranças.
Eu volto. Trarei a saudade tatuada na pele e a paixão renovada.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Jerônimo

Sim, eu penso em saltar por janelas.
Não, não sou suicida, nem sou daquelas pessoas que fazem questão de chamar a atenção sobre si mesmas.
Sou tímido.
Essa idéia sempre me vinha à cabeça quando estava em ambientes excessivamente formais, em que as pessoas ficam contidas aos gestos uniformes, aos movimentos comedidos, ao silêncio. Mas também já pensei em saltar de janelas de festas, de sacadas, de coberturas.
Eu olhava a janela, o espaço em volta, e me imaginava arrancando o paletó, sério, contando os passos, indiferente, e com o olhar decidido e um sorriso sarcástico, correria alguns passos e estouraria a vidraça, voando junto com os fragmentos de vidro, se vidro houvesse.
Um psicólogo diria, como já disse, que isso seria a "expressão inconsciente de um anseio em romper com a própria timidez, uma forma de rebeldia contra a opressão que o convívio provoca em mim".
Não, doutor, não é isso! Eu sei bem o que é. E os psicólogos não me dizem nada, nem os psiquiatras e nem os charlatães.
Quero me divertir, só isso. Quero tirar sarro com a hipnose da mesmice.
Sempre quis saltar por diversão, para me fingir de herói, ver quantos giros eu conseguiria dar no ar ou quantas piruetas ou quantas coisas meus olhos conseguiriam distinguir na queda livre.
Agora mesmo eu saltaria dessa janela que está bem na minha frente, se não estivesse preso a essas algemas e com os meus pés amarrados e a cabeça pesada pelos remédios.
Só a queda livre me libertaria agora, ou a morte. Mas as duas alternativas parecem unidas e não posso por minhas próprias mãos, matar o maldito segredo que carrego, que não se revela para mim, mas não me abandona.
Tentei dizer isso à doutora, mas é como se estivesse com a cabeça embaixo d'água produzindo sons indistintos, me afogando nas palavras que não saíam da minha bôca.
Como não entendesse nada do que dizia, ela mandou que me dessem outra dose de tranquilizante e aqui estou de novo, dopado, diante da janela aberta, amarrado em minha mísera vida, sendo Jerônimo.
(Ver o post Cena, de 05/01/2006)

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Razão subvertida

Ontem perdi a hora com todas as gotas de tempo.
E as gotas caíram em minha alma, torturando-a com uma constância monótona.
Pingaram uma a uma na noite escura, imitaram a chuva fina que caía fora da casa velha.
Caíram, gota-a-gota enquanto eu estava lá, deitado, amarrado a uma distância absurda, contando cada pingo no telhado, cada mínima dose de tempo.
E aquele que seria o único remédio para a tortura do tédio em minha insônia
estava longe.
Mas mesmo tão longe, eu podia vê-la, ela, o remédio.
Ou talvez o próprio delírio, mas ela.
Meu mal ou minha cura.
Estava tão longe daquele sorriso
que a distância acabou por se encurtar naquele meu desespero de saudade,
fechei os olhos ignorando a escuridão e o bater das gotas.
Logo percebi que a chuva mudava de tom,e o novo timbre que ouvia se parecia com a voz que ela me dera ao telefone alguns minutos atrás.
Entrei na voz dela, na imaginária voz que gravei em meus sentidos.
De olhos fechados,logo cheguei à sua boca, e nesse delírio de distância e saudade,
acabei beijando o absurdo e sentindo o gosto da boca dela.
E como ela me beijava...
ela me beijava como se sentisse a mesma saudade, como se, mesmo a uma distância tão grande, ela me visse navegando no escuro, procurando um sonho em que estivéssemos juntos, entrando comigo naquela rebeldia de tempo e espaço.
Criamos o nosso mundo ali, naquele lapso do ante-sono, entre a razão e o delírio.
Até que o sono arrebatou meu pensamento e o sonho fugiu ao meu controle, e aquele instante evaporou como névoa, mas eu me lembro muito bem!
Que antes da intervenção da lógica, em sua ira de ver rompida sua lei, em sua obcessão de querer tudo certo e ordenado, antes que essa maníaca afastasse aquele portal mágico que criei,eu sei que estive com ela e que dormimos juntos.
Sei disso com muita certeza, porque acordei com o sol sorrindo, e o mundo irradiava a mesma luz que vi no sorriso dela.
Tudo isso aconteceu ontem à noite e eu me lembro muito bem.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Cena

Por quatro noites seguidas, dois homens fortes de cara fechada desceram as escadas e seguiram o corredor do segundo piso até o final.
Ao fim da quarta noite, como se encontrassem o objeto de tão obstinada busca, levantaram a cabeça do homem que se sentava próximo à porta do último quarto, o que estava de pé gritou "jerônimo? esta é a sua sentença" e apontou uma arma brilhante que disparou duas balas de chumbo para o interior da cabeça do homem sentado.
Ao passarem por mim, chutaram com desdém minhas pernas mortas e cuspiram na minha cara palavras de repulsa enquanto eu gaguejava assustado pelo barulho dos tiros.
O cuspe caiu nas faixas que enrolavam minha cabeça que doía por causa da lobotomia mal-sucedida.
O que os homens não ouviram era o que eu tentava dizer quando repetia "ah-ah-ah" freneticamente sem produzir qualquer palavra.
Eu tentava dizer a eles que Jerônimo sou eu. Mas minha sentença não foi cumprida e tenho que penar esta vida e este segredo depois da morte que não tive.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Terra

Estive lá.
Pisei na terra.
Revi os vivos e os mortos. Vi a mim mesmo, criança, quando ainda tinha medo e fascínio com aquilo que me era novo: o mundo.
Perdi-me no tempo e segui andando a esmo confundindo o caminhar do tempo de agora com a memória do eu-menino, onde nasci, onde moram meus pais, onde todos os meus ancestrais estão enterrados.
Eu me vi seguindo os passos de meu avô, os passos largos e ritmados do alazão montado por seu Augusto, debaixo do chapéu “três X” e enrolado em uma capa “colonial” que cobria toda a garupa do animal.
Era ele, o meu avô, o homem que tinha tempo de ouvir um menino. Eu era o menino que gostava de ouvir o homem que contava estórias de um tempo que não era o meu. Um homem que tinha um furo no queixo, que debochava da seriedade dos outros homens, meu avô.
Senti o frio deste dia distante, quando andava sobre um cavalo que pateava cauteloso na lama fina da estrada, e sob uma neblina de gelar os ossos. Era eu, adolescente, seguindo os passos de Vovô Augusto em direção à sede do seu pedaço de terra naquele sertão de meu Deus.
Era eu aprendendo o desconforto e o prazer de cavalgar pelo mundo, de se deslocar daquela forma tão primitiva e verdadeira. A honestidade de respeitar o ritmo do tempo, de alçar cada passo, movendo cada músculo e pagando, com esforço, cada palmo do caminho.
Ali as lições não eram faladas, eram vividas. E todo o desassossego da alma humana se resumia a um cavalgar lento, contra a vontade do tempo e contra toda precaução.
Lá as estradas eram longas, tortuosas e perigosas. Lá estávamos à mercê da natureza.
Aprendi, na passividade do rosto do velho Augusto, que sempre há algo a fazer e que a vida nos pretende sérios para carregar os fardos e fortes para transcender a dor. Aprendi que dois homens andando juntos estão a um só tempo solitários com suas vidas e solidários no caminhar.
Era eu aprendendo que a vida, ali, se dividia em uma, duas, três; porque eu, sendo filho de meu pai, filho do meu avô, era uma coisa só, três elos em um, e já era a promessa de continuidade, sina, saga e destino.
Vovô Augusto guiava os passos porque sabia o caminho e o ritmo que a vida impõe. Eu seguia atrás, calado e atento. Não haviam palavras que se acomodassem ao espírito nem felicidade que se aconchegasse à alma atordoada pela neblina e pelo frio.
Enquanto rompíamos os sons da chuva na terra e recebíamos o calor vivo do suor dos animais, éramos pura concordância. Enquanto estive ali no lugar de meu pai, vi meu filho me seguindo, e logo vi meu neto, como aprendiz daquele que aprendeu comigo.
Eu era a última mão viva da minha tríade, e neste momento via-me de longe, sendo, a um só tempo: pai, filho e avô.
Naqueles passos, eu vi minha dinastia e me senti feliz. Vi o pioneiro, vi seus gestos e sua força, e o caminho já não importava mais.
Agora era meu pai quem guiava o caminho e meu avô, neste então, já não vivia mais. E eu já tinha a ciência do caminho, o que aprendia agora era a coragem com que deveria guiá-lo, a consciência do controle, a sabedoria de ser livre e senhor das rotas que a vida oferece.
No meu rosto já estavam esculpidos a saudade da perda, a seriedade do trabalho e as cicatrizes de paixão. E eu tinha tão poucos anos.
O tempo seguiu sua linha e agora meu pai era o último elo vivo, e logo seria eu. Mas a certeza da morte não me trazia dor, só uma resignação muda.
Senti-me pronto a olhar para frente, senti-me apto a gerar um filho e continuar a tarefa de meus ancestrais.
Aquele chão é casa de meu pai e do pai de meu pai. É onde brotaram a força e a fibra que compõe minha essência, é onde meu passado, presente e futuro se fundem de forma misteriosa e bonita; é onde minhas lágrimas me trazem conforto e maturidade, onde sou raiz.
Pisando naquela terra, tive a certeza de que sempre voltaria, e um dia traria meu filho, e que o guiaria na cavalgada muda, para que aprendesse também o verdadeiro sentido da vida.