sexta-feira, julho 28, 2006



Não há uma só gota de palavra que respingue aqui, debaixo desse céu absurdo.

Tudo é lua, céu, estrelas e eu.

Acredito que nunca estive tão absurdamente tranquilo na solidão.

quinta-feira, maio 25, 2006

areia dos sonhos

Quando pequeno, lembro de sonhar com areia.
Era uma grande bola de areia - sim, nos sonhos de crianças elas são possíveis -, e ela rolava aumentando de tamanho e, à medida que aumentava, ela se tornava mais leve e, à medida que ficava leve, a superfície pela qual rolava se tornava mais rugosa e o seu rolar na superfície irregular era algo incômodo e insuportável, eu sentia isso.
Quando a bola de areia parecia atingir seu ápice de tamanho e a superfície já não tinha como ser mais irregular, ela se equilibrava sobre a ponta de uma agulha e essa imagem simbolizava o extremo de uma angústia sufocante.
Mas a bola se tornava pequena de novo, pequena como a ponta da agulha em que se equilibrava e sua densidade era tanta que seu peso era muitas vezes maior, mas a superfície se tornava lisa e o seu deslocamento era, então, suave, lento e tranquilo.
Eu devia ter três ou quatro anos, pelas minhas contas de adulto.
Não havia medos nem a escravidão da lógica, só a angústia ilustrada por minha própria imaginação.
Meus sonhos eram uma aliança intuitiva entre o que sentia e as coisas que via no mundo sem saber ao certo o que eram, como areia, peso ou agulha.
Hoje sinto meus sonhos contaminados pela lógica, enquadrados.
Mas na noite passada, eu vi areia em um sonho qualquer e, no próprio sonho, lembrei daquele sonho de criança. Nesse meta-sonho, eu vi que um dia fui capaz de elaborar algo despido de todos os conceitos que me foram socialmente servidos até hoje, eu era pura imaginação.
Percebendo isso, quis construir um sonho novo, então pulei no ar e saí voando.

quinta-feira, maio 04, 2006

Intimidade

Te toquei
até que entre tua pele e meu tato não houvesse mais qualquer segredo,
ainda que,
entre nós,
todo toque seja novo.
Abracei teu corpo
até que nossa temperatura fosse única
e nossos corpos,
simbióticos.
Percorri cada poro e cada pêlo
até que minha boca conhecesse
cada fragmento de tua geografia.
Passeei tanto em teu corpo
que minha memória,
no resto das horas que passo sem ti,
não concebe mais qualquer lembrança
que não seja essa,
de nossa existência íntima,
de nossa serenidade lasciva.

(Fotografia de A.Brito)

terça-feira, abril 18, 2006

Ego trip

Viajando pelas veredas de mim mesmo encontrei, guardadas, certas coisas das quais sempre acreditei ter me livrado, por não gostar. Eram lembranças ruins, em que sofro.
E elas estavam guardadas em mim.
Descobri, na verdade, que nunca quisera perdê-las. Estranho apego ao insucesso, estranho culto ao desconforto.
Acomodei-as em memórias sempre visíveis e, por mais insólito que isso possa parecer, fiz, com elas, um ambiente para o qual fujo sempre que algo me assusta.
É como um quarto de misérias que construo quando deveria destruir.
Tentei ignorá-las, rir-me delas e lançá-las fora de vez, mas falhei no propósito. À medida que me desfazia, colhia-as de volta com o desespero de quem cata papéis ao vento.
Notei que não era involuntário, havia vontade minha ali, originada não sei de onde.
Surpreso com minha própria natureza, parei de tentar interferir e fiquei só contemplando toda a dimensão do enorme paradoxo que faz de mim o estranho ser que sou.

Estranho, ser esse ser. Ser esse ser humano estranho.
Humano, estranho ser.
Estranho ser humano, esse ser humano estranho que...
amo ser.

sexta-feira, abril 14, 2006

dimensão de nós

Onde estivemos?
perdidos, ambos, num mesmo olhar.
Fugimos,
e fixamos morada num ponto onde todas as dimensões foram uma única coisa:
verdade.
A verdade de nossos corpos e almas, a verdade humana do amor e da carne,
aquela coisa única que só sentimos ali.

Sim, estivemos lá,
naquela concretude de tempo,
naquela incerteza de espaço,
naquela perfeição de tudo,
na nossa alcova.

No ponto onde estivemos, estivemos a sós e completos.
Tu e eu,
fartos,
plenos,
gratos,
completos de amor.

quarta-feira, abril 05, 2006

A Cidade

A cidade ferve, a cidade pulsa, a cidade grita, corre, palpita e conjuga uma infinidade imensa de verbos.
A urbe é viva.
Estranho este fenômeno de interação. A cidade devora a vida dos que vivem por ela e cresce, ganhando corpo e movimento, ganhando verbos e mais verbos no seu agir.
Nós, os humanos, temos este hábito: criamos coisas e nos tornamos parte delas.
Todos os dias, acordamos e encarnamos nosso papel no teatro urbano, alimentamos a inquietação coletiva que já nos é natural.
Somos todos uma única figura massiva no cotidiano. A cidade é exatamente isso, a soma dos indivíduos, dos sons, dos movimentos. A fusão das várias energias despendidas em uma única vida: a cidade.
Eis aí um bom paradoxo: A cidade é humana ou o homem é que é urbano?
O fato é que, indubitavelmente, ela “É”, e se apresenta como um gigantesco “Ser” que acorda cedo, tem pressa, trabalha, almoça, se afoba no trânsito, perde a paciência no “rush” e, passado o stress, deixa cair, vertiginosamente, o metabolismo, tornando-se plácida e familiar entre uma “novela-das-sete” e um Jornal Nacional.
Há quem diga também, que ela se enamora da lua e se prostitui nas bocas de noite. Que pode ser vista em bares, embriagada, buscando sedução e fazendo coisas proibidas. Que é ébria, boêmia, nostálgica e festiva nas madrugadas.

Pessoalmente, prefiro vê-la em um trechinho projetado minha janela. Nestas horas em que divido o céu com ela, contemplo-a maternal e cúmplice e ela me olha como em um desabafo, dizendo estar cansada e querer falar pouco, mas que aceita uma bebida, um sorriso e um afago antes de dormir.

sexta-feira, março 24, 2006

Nirvana

Estive à beira dos teus olhos, no limiar do desejo, perigosamente exposto ao efeito da tua presença.

Estivemos, os dois, às margens do abismo. Induzidos, pela lógica hormonal de nossos corpos complementares, a saltar .
Estávamos na fronteira de nós mesmos, fuzilados pelo calor químico da pele, torturados pela ansiedade dos lábios, pela curiosidade tátil das mãos invasoras, carinhosas e atrevidas.

Ainda assim, à beira do salto, entre tantas coisas que poderia ter feito, decidi experimentar algo novo e te segurei assim, de perto.
Antes que os olhos se cerrassem e se perdesse a chance de uma loucura nova, decidi te olhar por dentro.
Percebi que toda a composição daquele instante despia nossas máscaras e revelava nossa essência, vazia de medos, rica em verdade.
Era preciso explorar o lapso de novidade que coube ali.
E contra toda a previsão e toda precaução que se deve ter nessas transições entre corpos e almas, viajamos juntos em nós mesmos descobrindo o quanto somos simples e a maravilha que isso representa.
Não sabia o quanto era mais forte essa sensação.

Navegamos um no outro desfeitos de qualquer ânsia e distantes de toda consciência. Nos sentimos mais que próximos, dentro.
Estivemos um no outro, visitamos a verdade que habita em nós.
Transcendemos o desejo, superamos tudo e ficamos ali, naquele transe de humanidade.
Abraçamos a alma um do outro e estivemos felizes com a descoberta. Jamais fomos tão longe, jamais estivemos tão unidos.

E foi à partir daí, desse ponto, que resolvemos partir, e da beirada do abismo que não saltamos, fomos arrebatados, mas, ao invés de cair, voamos.
E o que era puramente químico e orgânico, se tornou algo transcendente e místico e o que era prazer, virou nirvana.

quinta-feira, março 09, 2006

Palavra...

Perco a palavra todas as horas.
Ela me vem e me escapa.
Escorrega e foge como uma bela mulher em uma festa, que olha, seduz e some.
Magnetiza e segue.
Atrai e atiça.
Não é minha, não tem dono.
É bela, absoluta e perfeita.
Mas não pára, não cede e não se deixa tocar.

Uma palavra em movimento, é o que persigo em cada cena que percorro.
Uma só palavra me faz tão prolixo. Deixa meus lábios em transe e meus dedos tontos.
E há tantas, e todas tão lindas e tão fugidias.
Mas, entre todas, há sempre uma.
Palavra, paixão minha, é uma obcessão encontrar-te, é apaixonante te amar.

quinta-feira, março 02, 2006

O portal para Deus.

Em um único e mágico instante, uma criança sorriu.
E diante daquele sorriso, a roda do mundo parou e o improvável aconteceu: as pessoas notaram o sorriso.
Não, não só notaram como sentiram também. Seus corações, embaçados de rotina, foram capazes, naquele instante singular, de perceber a grandeza da verdade que se revelava no sorriso de uma criança.
As pessoas amaram ver o amor no sorriso da criança.
E, de uma forma completamente inusitada, o efeito daquele sorriso se alastrou. As pessoas, uma a uma, transmitiram verdade também. E a verdade nada mais era do que a pura existência, o compartilhamento de uma felicidade simples, humana e gratuita, a verdade era só o amor. E o amor era Deus.
Jamais se viu isso antes.
A humanidade toda parada, estática, os motores silentes, as prioridades abandonadas e a pressa sufocada por aquela urgência de verdade.

Naquele único e mágico instante a razão dos homens se rendeu ao mistério da paixão.
Deus, curioso por tamanho silêncio, abriu a janela do céu e o que viu fez com que sua compreensão divina ficasse, também, estagnada.
Viu, congelada, no terreiro de sua criação, aquela imagem despropositada: as pessoas paradas, contemplando o sorriso de uma criança. A humanidade, que andava tão distraída, de repente, por conta própria, havia enxergando a verdade que tanto esforço Deus já havia feito para enxergassem.
As pessoas o viam na criança e o viam umas nas outras. As pessoas olhavam para ele, Deus, sem saber que o faziam.
Impressionado com aquilo, maravilhado e extasiado com aquilo, Deus ergueu sua voz de trovão gritando aos anjos _Aleluia, eles enxergaram! e já ordenava, exultante que se abrissem as portas do céu e que daria uma grande festa para comemorar a salvação de seus filhos.
Mas antes que Deus chegasse ao primeiro degrau, antes que despencasse à Terra para felicitar seus filhos por haverem enxergado a verdade; antes que um único ponteiro se movesse, um flash foi disparado na multidão e o instante que veio depois acabou com toda a magia.
É que o capitalista, encantado com aquele sorriso, cogitou de congelá-lo e vendê-lo e, por isso tirou uma foto, que virou um cartaz, um slogan e um single. O sorriso do menino, então, atendeu a um telefone celular, iluminou um creme dental, vendeu milhares de planos de saúde e se perdeu, entre os out-doors e os banners.
O sorriso que era tão mágico e tão puro, foi empacotado de todas as formas e distribuído em milhões de produtos.
Aquele sorriso embalado e manipulado já não era mais de verdade.
E as pessoas que foram tocadas, usando sua humana habilidade de esquecer o óbvio e ignorar o próprio coração, mesmo tendo experimentado estar diante de Deus, entenderam de retomar a rotina.
Desolado, assistindo à velocidade com que aquela loucura se espalhava, Deus, desanimado, sentou-se na escada e calou todas as suas palavras.
Os anjos, diante de um Deus magoado, recolheram todas as trombetas e envolveram Deus nos braços. Disseram a ele que outro portal se abriria e que, mais cedo ou mais tarde, os homens entenderiam e então a salvação se completaria.
Deus limitou-se a virar as costas e voltar para casa. Mas, a cada passo divino, outras crianças nasciam.
E assim o mundo seguiu criando e atropelando as verdades. Amando e matando as crianças.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O Falso Mudo, o poeta que sangra em palavras.

Me perguntaram porque calei a poesia.
Se havia enjoado de sambinha, de Vinícius, de Betânia e de todas aquelas vozes das quais sempre fui arauto. Se havia me cansado daquelas palavras que entoava com tanta fé e tanta intimidade que era como se advogasse pelos poetas perante Deus.
Me perguntaram, enfim, se eu havia perdido a fé na paixão.
Estão incomodados comigo, como fazem as pessoas diante de alguém que abandona tudo aquilo que lhe é peculiar e íntimo. Como uma criança indiferente a um doce ou um velho que admira suas saudades com contemplação silenciosa e inerte.
Eu digo.
É que quando escuto um samba bonito, quando vinícius fala baixinho que "o amor é um espinho que não se vê em cada flor"; quando ele fala sobre saudade, quando ouço a profundidade de um bolero na voz de Bethânia; quando leio Neruda, Drummond, Quintana, quando mergulho em palavras com esses velhos investigadores da profundeza da paixão carnal, tudo aflora e tudo dói.
É que enquanto cantava e repetia aquelas profecias de amor e paixão, o que eu queria, acima de tudo, era entender o que se continha naquelas palavras.
Eu vivi a paixão, eu vivi o amor e a minha miséria, agora, foi ter perdido tudo isso.
E hoje, tenho medo de cantar e chorar.
Se tentar escrever, é capaz que o coração se rasgue e minha alma derrame em preto e branco.
Aí então os amigos me dariam tapinhas nas costas com aqueles inúteis olhares de piedade; os impacientes virariam as costas com desprezo e os críticos me chamariam de meloso e repetitivo. E dessa forma, aquelas palavras que retratariam a minha própria essência desnuda estariam assim, expostas ao mundo, ridicularizadas.
E ninguém, por fim, teria curado a ferida que haveria aberto.
Por isso calo as palavras e contemplo a passagem do tempo para que a dor se vá.
Por isso tenho sido o inverso de mim.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

O Filho

Já haviam se passado dez anos desde os longínquos dezenove em que se apaixonou perdidamente e foi traído.
Era tempo suficiente para esquecer, mas nada foi esquecido.
Nem a traição, nem a loucura, nem os olhos, nem braços, nem a pele, nem a voz, nem o chiclete que ela não cansava de estalar com língua.
Em dez anos, nada se perdeu em sua memória. Não se descoloriram os lábios irrigados a sangue nem os olhos marinhos brilhando; não se desfez o calor da pele nem o eriçamento dos pêlos. Até o cheiro daqueles momentos lhe chegaria ao olfato se aspirasse as memórias. Se cerrasse os olhos, a sentiria nos braços, naquela adolescência louca, naquela efervecência, naquela loucura regada a perfeição, naquilo que, para ambos, era algo novo: a paixão.

Foi a primeira vez que caiu pela paixão. Foi quando descobriu a delícia da adrenalina do amor extremo e corpóreo.

Caiu, perdeu-se.
Foi traído em plena cidade, no mesmo palco daqueles momentos mágicos, viu o cenário trocado e a atriz encarnando uma outra personagem.
A mulher que ora via travestida pela vaidade, forjada a ouro pedras e perfumes e de mãos dadas com o intruso anti-herói.
A linda mulher que via, assombrosamente sedutora, não tinha os mesmos olhos de antes, mas o olhou com um lapso de verdade, em uma fração de segundos.
E ele viu seu último olhar. Era distante, estranho, covarde.
Desandou cidade abaixo. Esqueceu-se de fechar a boca, cerrar os olhos e respirar. As pernas trêmulas abriram caminho onde os olhos não enxergavam, paralisados que estavam, atônitos que estavam, chocados, surrados.
Perdeu o chão procurando ar. Perdeu a vida pela primeira vez.

Dez anos passados e ainda não entendia o que fazia quando passava de carro diante do portão daquela casa que era dela, na velha cidade dos dois.
Não era algo voluntário. Saia de carro e sempre acabava passando pela rua dela. Acelerava quando passava enfrente ao muro em que aprenderam a se apaixonar.
Por todo aquele tempo, havia fugido dela. Ignorou todas as cartas, irritou-se com todos os recados, desligou o telefone, fugiu, fugiu, e, no entanto, quando visitava a cidade, via-se perdido, sozinho, dirigindo hipnoticamente pela rua em que ela morava.
Sempre se perguntava o que aconteceria se, de repente, a visse. Planejava ignorá-la, às vezes pensava em fingir normalidade, perguntá-la sobre a vida, os planos.
A única coisa que não conseguia fazer era não pensar nela.

Até aquela noite, na praça, quando uma criança de uns 9 anos fisgou sua atenção por um motivo que desconhecia. Uma familiaridade estranha nos olhos, um "qualquer coisa" no sorriso daquele menino, uma identidade no jeito, nos cabelos encaracolados. Não soube compreender a razão que o levou a acompanhar aquele menino com os olhos.
Até que o menino correu e puxou os braços de uma mulher...que se virou...que conversou com a criança...que levantou o rosto...que o olhou nos olhos, que ficou pálida e que depois corou. Era ela.

Sentiu o incendio no rosto. Seu coração falhou uma batida e seus pensamentos pararam. Não houve uma fagulha de razão naquela conexão de olhares. Era o olhar de uma alma a outra. Os dois se viam por dentro, desarmados de qualquer artifício e despidos do tempo que os havia separado.
Os mais atentos puderam ouvir os corações batendo, sentiram o súbito afeto que ele teve pela criança, perceberam a temperatura do ar que exalavam dos pulmões, quando, finalmente, ousaram respirar.

Outra vez atônito, cambaleou cidade abaixo, até que a ouviu aproximar-se. Os passos dela correndo na calçada.
Parou, virou-se.
Ela usava uma blusa vermelha. Ele viu seus seios maiores, ele viu seu rosto mais sério, ele viu seus olhos chorando, mas também viu a mesma beleza e sentiu a mesma loucura.
Seus corpos ordenaram tudo. A magia que fluiu naquele instante coordenou os passos de ambos que se abraçaram como velhos parceiros de dança em uma valsa harmônica e suave.
Mas o abraço foi forte, e o beijo sôfrego.
Ela envolveu seu rosto com as mãos e o beijou com a saliva temperada por lágrimas.
Beijaram-se reatando as pontas do tempo. Afagaram-se entre a ânsia e o carinho, esfregando-se, apertando-se, beijando os olhos, a testa, emaranhando os cabelos nas mãos, puxando-se para mais perto, para dentro.
E ficaram assim, na calçada, até que seus olhos pararam novamente, um dentro do outro. Ela soluçava e assentia com a cabeça. Não houve palavra, mas seu coração já sabia.Aquele menino era seu filho.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Oração vivida

Invado a madrugada lendo a noite com olhos tranquilos.
Pela janela, até a cidade me chega mais íntima. As luzes mais leves, os carros mais calmos.
Meu amor, que dorme na minha cama, desperta entre um sonho e outro, rouba meus olhos do livro e me estende o braço, preguiçosa, balbuciando com voz de sono que é para eu abraçá-la e dormir também.
A ordem impera com lógica indiscutível. Há tanta poesia neste momento que o livro perde qualquer sentido.
Ia fazer uma oração também, mas restou desnecessário. Há tanto amor aqui, que posso ver Deus sorrindo para nós e dizendo: boa noite!
Amém.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Estrada

(Trilha sonora: Secos e Molhados)
Quando caio na estrada é como se estivesse pedindo licença da minha própria vida. Abandono minha carcaça, crio meu próprio conceito de tempo, renovo o espírito e jogo fora os pensamentos que são velhos.
Há magia em uma viagem qualquer.
A mim não importa estar indo a um outro país ou ao centro da cidade. O que conta é o espírito que carrego quando saio de casa para ver as coisas. Sair é bom. Andar é bom.
Adoro andar pelo mundo, guiar meus olhos onde eles nunca estiveram, apreciar o belo e o feio, vencer distâncias, alturas, usar meu corpo para aquilo que lhe é tão primário e tão óbvio: o movimento.
Olhar paisagens me diverte. Seja pelo pára-brisa do carro, pela janela de um ônibus, de um avião, na amurada de uma balsa ou, simplesmente, de dentro do meu corpo em movimento, em uma bicicleta ou à pé, no alto de uma montanha, em qualquer lugar do planeta.
O que importa, em qualquer canto, é ser expectador do mundo, assistir a este espetáculo imenso.
Há algo muito forte na estrada. Algo que transforma, algo que transcende.
Minha vida é mais minha na estrada.

O movimento arranha minha alma com uma vontade absurda de sair, tira meu sono e incomoda meu corpo o tempo todo. Minha imaginação quer me arrastar, quer me levar para a estrada de novo, quer me lembrar o quanto sou autêntico quando lanço os pés no rumo de algo novo.

Mas a estrada alimenta a saudade e a saudade catalisa a paixão.
Então, haverão de perguntar, com fundamento: porque da estrada, então?
Para sentir a paixão mais forte. Para bebê-la em grandes doses, em um lugar bonito do mundo, com os olhos infestados de estrelas, com a cabeça mergulhada no universo, viajando na órbita dos beijos mais intensos, na infinitude das melhores lembranças.
Eu volto. Trarei a saudade tatuada na pele e a paixão renovada.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Jerônimo

Sim, eu penso em saltar por janelas.
Não, não sou suicida, nem sou daquelas pessoas que fazem questão de chamar a atenção sobre si mesmas.
Sou tímido.
Essa idéia sempre me vinha à cabeça quando estava em ambientes excessivamente formais, em que as pessoas ficam contidas aos gestos uniformes, aos movimentos comedidos, ao silêncio. Mas também já pensei em saltar de janelas de festas, de sacadas, de coberturas.
Eu olhava a janela, o espaço em volta, e me imaginava arrancando o paletó, sério, contando os passos, indiferente, e com o olhar decidido e um sorriso sarcástico, correria alguns passos e estouraria a vidraça, voando junto com os fragmentos de vidro, se vidro houvesse.
Um psicólogo diria, como já disse, que isso seria a "expressão inconsciente de um anseio em romper com a própria timidez, uma forma de rebeldia contra a opressão que o convívio provoca em mim".
Não, doutor, não é isso! Eu sei bem o que é. E os psicólogos não me dizem nada, nem os psiquiatras e nem os charlatães.
Quero me divertir, só isso. Quero tirar sarro com a hipnose da mesmice.
Sempre quis saltar por diversão, para me fingir de herói, ver quantos giros eu conseguiria dar no ar ou quantas piruetas ou quantas coisas meus olhos conseguiriam distinguir na queda livre.
Agora mesmo eu saltaria dessa janela que está bem na minha frente, se não estivesse preso a essas algemas e com os meus pés amarrados e a cabeça pesada pelos remédios.
Só a queda livre me libertaria agora, ou a morte. Mas as duas alternativas parecem unidas e não posso por minhas próprias mãos, matar o maldito segredo que carrego, que não se revela para mim, mas não me abandona.
Tentei dizer isso à doutora, mas é como se estivesse com a cabeça embaixo d'água produzindo sons indistintos, me afogando nas palavras que não saíam da minha bôca.
Como não entendesse nada do que dizia, ela mandou que me dessem outra dose de tranquilizante e aqui estou de novo, dopado, diante da janela aberta, amarrado em minha mísera vida, sendo Jerônimo.
(Ver o post Cena, de 05/01/2006)

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Razão subvertida

Ontem perdi a hora com todas as gotas de tempo.
E as gotas caíram em minha alma, torturando-a com uma constância monótona.
Pingaram uma a uma na noite escura, imitaram a chuva fina que caía fora da casa velha.
Caíram, gota-a-gota enquanto eu estava lá, deitado, amarrado a uma distância absurda, contando cada pingo no telhado, cada mínima dose de tempo.
E aquele que seria o único remédio para a tortura do tédio em minha insônia
estava longe.
Mas mesmo tão longe, eu podia vê-la, ela, o remédio.
Ou talvez o próprio delírio, mas ela.
Meu mal ou minha cura.
Estava tão longe daquele sorriso
que a distância acabou por se encurtar naquele meu desespero de saudade,
fechei os olhos ignorando a escuridão e o bater das gotas.
Logo percebi que a chuva mudava de tom,e o novo timbre que ouvia se parecia com a voz que ela me dera ao telefone alguns minutos atrás.
Entrei na voz dela, na imaginária voz que gravei em meus sentidos.
De olhos fechados,logo cheguei à sua boca, e nesse delírio de distância e saudade,
acabei beijando o absurdo e sentindo o gosto da boca dela.
E como ela me beijava...
ela me beijava como se sentisse a mesma saudade, como se, mesmo a uma distância tão grande, ela me visse navegando no escuro, procurando um sonho em que estivéssemos juntos, entrando comigo naquela rebeldia de tempo e espaço.
Criamos o nosso mundo ali, naquele lapso do ante-sono, entre a razão e o delírio.
Até que o sono arrebatou meu pensamento e o sonho fugiu ao meu controle, e aquele instante evaporou como névoa, mas eu me lembro muito bem!
Que antes da intervenção da lógica, em sua ira de ver rompida sua lei, em sua obcessão de querer tudo certo e ordenado, antes que essa maníaca afastasse aquele portal mágico que criei,eu sei que estive com ela e que dormimos juntos.
Sei disso com muita certeza, porque acordei com o sol sorrindo, e o mundo irradiava a mesma luz que vi no sorriso dela.
Tudo isso aconteceu ontem à noite e eu me lembro muito bem.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Cena

Por quatro noites seguidas, dois homens fortes de cara fechada desceram as escadas e seguiram o corredor do segundo piso até o final.
Ao fim da quarta noite, como se encontrassem o objeto de tão obstinada busca, levantaram a cabeça do homem que se sentava próximo à porta do último quarto, o que estava de pé gritou "jerônimo? esta é a sua sentença" e apontou uma arma brilhante que disparou duas balas de chumbo para o interior da cabeça do homem sentado.
Ao passarem por mim, chutaram com desdém minhas pernas mortas e cuspiram na minha cara palavras de repulsa enquanto eu gaguejava assustado pelo barulho dos tiros.
O cuspe caiu nas faixas que enrolavam minha cabeça que doía por causa da lobotomia mal-sucedida.
O que os homens não ouviram era o que eu tentava dizer quando repetia "ah-ah-ah" freneticamente sem produzir qualquer palavra.
Eu tentava dizer a eles que Jerônimo sou eu. Mas minha sentença não foi cumprida e tenho que penar esta vida e este segredo depois da morte que não tive.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Terra

Estive lá.
Pisei na terra.
Revi os vivos e os mortos. Vi a mim mesmo, criança, quando ainda tinha medo e fascínio com aquilo que me era novo: o mundo.
Perdi-me no tempo e segui andando a esmo confundindo o caminhar do tempo de agora com a memória do eu-menino, onde nasci, onde moram meus pais, onde todos os meus ancestrais estão enterrados.
Eu me vi seguindo os passos de meu avô, os passos largos e ritmados do alazão montado por seu Augusto, debaixo do chapéu “três X” e enrolado em uma capa “colonial” que cobria toda a garupa do animal.
Era ele, o meu avô, o homem que tinha tempo de ouvir um menino. Eu era o menino que gostava de ouvir o homem que contava estórias de um tempo que não era o meu. Um homem que tinha um furo no queixo, que debochava da seriedade dos outros homens, meu avô.
Senti o frio deste dia distante, quando andava sobre um cavalo que pateava cauteloso na lama fina da estrada, e sob uma neblina de gelar os ossos. Era eu, adolescente, seguindo os passos de Vovô Augusto em direção à sede do seu pedaço de terra naquele sertão de meu Deus.
Era eu aprendendo o desconforto e o prazer de cavalgar pelo mundo, de se deslocar daquela forma tão primitiva e verdadeira. A honestidade de respeitar o ritmo do tempo, de alçar cada passo, movendo cada músculo e pagando, com esforço, cada palmo do caminho.
Ali as lições não eram faladas, eram vividas. E todo o desassossego da alma humana se resumia a um cavalgar lento, contra a vontade do tempo e contra toda precaução.
Lá as estradas eram longas, tortuosas e perigosas. Lá estávamos à mercê da natureza.
Aprendi, na passividade do rosto do velho Augusto, que sempre há algo a fazer e que a vida nos pretende sérios para carregar os fardos e fortes para transcender a dor. Aprendi que dois homens andando juntos estão a um só tempo solitários com suas vidas e solidários no caminhar.
Era eu aprendendo que a vida, ali, se dividia em uma, duas, três; porque eu, sendo filho de meu pai, filho do meu avô, era uma coisa só, três elos em um, e já era a promessa de continuidade, sina, saga e destino.
Vovô Augusto guiava os passos porque sabia o caminho e o ritmo que a vida impõe. Eu seguia atrás, calado e atento. Não haviam palavras que se acomodassem ao espírito nem felicidade que se aconchegasse à alma atordoada pela neblina e pelo frio.
Enquanto rompíamos os sons da chuva na terra e recebíamos o calor vivo do suor dos animais, éramos pura concordância. Enquanto estive ali no lugar de meu pai, vi meu filho me seguindo, e logo vi meu neto, como aprendiz daquele que aprendeu comigo.
Eu era a última mão viva da minha tríade, e neste momento via-me de longe, sendo, a um só tempo: pai, filho e avô.
Naqueles passos, eu vi minha dinastia e me senti feliz. Vi o pioneiro, vi seus gestos e sua força, e o caminho já não importava mais.
Agora era meu pai quem guiava o caminho e meu avô, neste então, já não vivia mais. E eu já tinha a ciência do caminho, o que aprendia agora era a coragem com que deveria guiá-lo, a consciência do controle, a sabedoria de ser livre e senhor das rotas que a vida oferece.
No meu rosto já estavam esculpidos a saudade da perda, a seriedade do trabalho e as cicatrizes de paixão. E eu tinha tão poucos anos.
O tempo seguiu sua linha e agora meu pai era o último elo vivo, e logo seria eu. Mas a certeza da morte não me trazia dor, só uma resignação muda.
Senti-me pronto a olhar para frente, senti-me apto a gerar um filho e continuar a tarefa de meus ancestrais.
Aquele chão é casa de meu pai e do pai de meu pai. É onde brotaram a força e a fibra que compõe minha essência, é onde meu passado, presente e futuro se fundem de forma misteriosa e bonita; é onde minhas lágrimas me trazem conforto e maturidade, onde sou raiz.
Pisando naquela terra, tive a certeza de que sempre voltaria, e um dia traria meu filho, e que o guiaria na cavalgada muda, para que aprendesse também o verdadeiro sentido da vida.