sexta-feira, outubro 31, 2003

Rodrigo

É uma estranha coincidência, não sei se tenho muitos amigos que se chamam Rodrigo por uma afinidade qualquer com o nome ou se a quantidade de "Rodrigos" no mundo é tão absurdamente grande assim.
O fato é que conheço uma infinidade de exemplares desta espécie. E tem Rodrigo para todo gosto.
Rodrigo não é um daqueles nomes que marcam as pessoas, tipo: todo "André" é assim, todo Carlos é assado, etc... "Rodrigo" pde significar muita coisa. Na minha sexta série, cheguei a ter 11 colegas Rodrigos na Sala. O sobrenome deles era a identidade pessoal.

Só na minha rua tem dois: um totalmente malandro, esse é meu amigo de infância; o outro, o oposto, um cara certinho.
É, certinho. Não estou ridicularizando o cara, só atestando a sua conduta, afinal ele de fato é um cara correto, coerente, um desses que põe qualquer um no chinelo em termos de organização e cuidado.

Desde pequeno vejo o Rodrigo na minha rua. Meio gordinho, calado, tí­mido, branco, ligeiramente vesgo e correto, muito correto.
O pai dele tinha uma pequena oficina de conserto de eletrodomésticos e afins na garagem. Do pai do Rodrigo não me lembro muito bem, sei que ele devia ser um cara determinado. Metódico e determinado, afinal de contas, ficar tentando corrigir o mecanismo de uma enceradeira aposentada duas décadas atrás não é para qualquer um, ele o fazia. O pai dele era daquele tipo que chamam de curioso, mexia mexia até consertar.
O Rodrigo estava sempre lá, na oficina. Calado, atento. Aprendendo desde cedo que os mecanismos foram feitos para funcionar, ao contrário do que geralmente penso.

Mas o pai do Rodrigo se cansou cedo das geladeiras e deixou Rodrigo, oficina, esposa e filha pequena e para consertar qualquer coisa no céu.

Estranho. Era o Rodrigo quem ia cuidar da casa. Um cara da minha idade. Mas eu não tinha qualquer dúvida de que ele era o cara certo para assumir responsabilidades tão grandes. Era como se o anjo torto de Drummond tivesse dito a ele: _Vai, Rodrigo, vai ser certo na vida.

Ele cuidava de tudo com tanta atenção e com tanto sigilo que até incomodava. No bom sentido, mas incomodava.

Eu tive uma Caloi 10, aquelas bicicletas antigas de corrida, a Janaí­na. Só quem tem caloi 10 sabe a emoção de pilotar aquilo, o Rodrigo tinha.

Não é confortável, é para correr. Corre tanto que um dia a Janaína me atirou no asfalto a 60 km por hora querendo, a todo custo, me depilar sem anestesia. e Conseguiu. Depilar e escalpelar.

Depois do acidente, a Janaína nunca mais foi a mesma, empenou toda. E a do Rodrigo intacta.
Rodrigo cuidava daquela bicicleta tanto, mas tanto que eu tinha certeza que qualquer parafuso do seus intrincados mecanismos de marcha era mais limpo do que minha própria pele. E ele a tratava como uma donzela. Conduzia-a pelo guidom até a avenida e só então assumia a posição de comando e começava a pedalar.

Um dia fiquei sabendo que a bicicleta do Rodrigo estava a venda. Me candidatei de imediato e comprei a Janaí­na II em três parcelas. Pronto. Estava decretada a minha submissão. À  partir de então sempre deveria satisfação ao Rodrigo.

Anos e anos de uso intenso, algumas pecinhas danificadas fizeram encostar a Jana, mas o Rodrigo estava lá, vigiando minha consciência. Desmontei a bicicleta todinha, peça por peça e pendurei na área, querendo ou não, abandonada.

Desde então, sempre passo pelo Rodrigo de cabeça baixa. Eu fracassei.

Quando ele comprou um fusquinha eu ainda não tinha carro. Quando comprei o meu carro, que era bem melhor que um fusca, Rodrigo tinha o melhor fusquinha da região. Agora tenho um carro novo, simples mas novo; Rodrigo tem um Chevette 92.

Outro dia passei enfrente à casa do Rodrigo e ele estava esquentando o seu carro que, é claro, fazia gosto de tão impecavelmente limpo e bem cuidado. Ele fez sinal de luz, me cumprimentando. Fiquei absurdamente constrangido com aquela titica de pombo na lataria fazendo aniversário de uma semana.

Rodrigo é motoboy e eu funcionário público, por isso o mundo anda tão invertido.

Se tiver chance, um dia ainda hei de dizer a ele: _Cuidado, rapaz! não vá morrer cedo como seu pai. O mundo precisa de mais Rodrigos como você.

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