sexta-feira, março 24, 2006

Nirvana

Estive à beira dos teus olhos, no limiar do desejo, perigosamente exposto ao efeito da tua presença.

Estivemos, os dois, às margens do abismo. Induzidos, pela lógica hormonal de nossos corpos complementares, a saltar .
Estávamos na fronteira de nós mesmos, fuzilados pelo calor químico da pele, torturados pela ansiedade dos lábios, pela curiosidade tátil das mãos invasoras, carinhosas e atrevidas.

Ainda assim, à beira do salto, entre tantas coisas que poderia ter feito, decidi experimentar algo novo e te segurei assim, de perto.
Antes que os olhos se cerrassem e se perdesse a chance de uma loucura nova, decidi te olhar por dentro.
Percebi que toda a composição daquele instante despia nossas máscaras e revelava nossa essência, vazia de medos, rica em verdade.
Era preciso explorar o lapso de novidade que coube ali.
E contra toda a previsão e toda precaução que se deve ter nessas transições entre corpos e almas, viajamos juntos em nós mesmos descobrindo o quanto somos simples e a maravilha que isso representa.
Não sabia o quanto era mais forte essa sensação.

Navegamos um no outro desfeitos de qualquer ânsia e distantes de toda consciência. Nos sentimos mais que próximos, dentro.
Estivemos um no outro, visitamos a verdade que habita em nós.
Transcendemos o desejo, superamos tudo e ficamos ali, naquele transe de humanidade.
Abraçamos a alma um do outro e estivemos felizes com a descoberta. Jamais fomos tão longe, jamais estivemos tão unidos.

E foi à partir daí, desse ponto, que resolvemos partir, e da beirada do abismo que não saltamos, fomos arrebatados, mas, ao invés de cair, voamos.
E o que era puramente químico e orgânico, se tornou algo transcendente e místico e o que era prazer, virou nirvana.

quinta-feira, março 09, 2006

Palavra...

Perco a palavra todas as horas.
Ela me vem e me escapa.
Escorrega e foge como uma bela mulher em uma festa, que olha, seduz e some.
Magnetiza e segue.
Atrai e atiça.
Não é minha, não tem dono.
É bela, absoluta e perfeita.
Mas não pára, não cede e não se deixa tocar.

Uma palavra em movimento, é o que persigo em cada cena que percorro.
Uma só palavra me faz tão prolixo. Deixa meus lábios em transe e meus dedos tontos.
E há tantas, e todas tão lindas e tão fugidias.
Mas, entre todas, há sempre uma.
Palavra, paixão minha, é uma obcessão encontrar-te, é apaixonante te amar.

quinta-feira, março 02, 2006

O portal para Deus.

Em um único e mágico instante, uma criança sorriu.
E diante daquele sorriso, a roda do mundo parou e o improvável aconteceu: as pessoas notaram o sorriso.
Não, não só notaram como sentiram também. Seus corações, embaçados de rotina, foram capazes, naquele instante singular, de perceber a grandeza da verdade que se revelava no sorriso de uma criança.
As pessoas amaram ver o amor no sorriso da criança.
E, de uma forma completamente inusitada, o efeito daquele sorriso se alastrou. As pessoas, uma a uma, transmitiram verdade também. E a verdade nada mais era do que a pura existência, o compartilhamento de uma felicidade simples, humana e gratuita, a verdade era só o amor. E o amor era Deus.
Jamais se viu isso antes.
A humanidade toda parada, estática, os motores silentes, as prioridades abandonadas e a pressa sufocada por aquela urgência de verdade.

Naquele único e mágico instante a razão dos homens se rendeu ao mistério da paixão.
Deus, curioso por tamanho silêncio, abriu a janela do céu e o que viu fez com que sua compreensão divina ficasse, também, estagnada.
Viu, congelada, no terreiro de sua criação, aquela imagem despropositada: as pessoas paradas, contemplando o sorriso de uma criança. A humanidade, que andava tão distraída, de repente, por conta própria, havia enxergando a verdade que tanto esforço Deus já havia feito para enxergassem.
As pessoas o viam na criança e o viam umas nas outras. As pessoas olhavam para ele, Deus, sem saber que o faziam.
Impressionado com aquilo, maravilhado e extasiado com aquilo, Deus ergueu sua voz de trovão gritando aos anjos _Aleluia, eles enxergaram! e já ordenava, exultante que se abrissem as portas do céu e que daria uma grande festa para comemorar a salvação de seus filhos.
Mas antes que Deus chegasse ao primeiro degrau, antes que despencasse à Terra para felicitar seus filhos por haverem enxergado a verdade; antes que um único ponteiro se movesse, um flash foi disparado na multidão e o instante que veio depois acabou com toda a magia.
É que o capitalista, encantado com aquele sorriso, cogitou de congelá-lo e vendê-lo e, por isso tirou uma foto, que virou um cartaz, um slogan e um single. O sorriso do menino, então, atendeu a um telefone celular, iluminou um creme dental, vendeu milhares de planos de saúde e se perdeu, entre os out-doors e os banners.
O sorriso que era tão mágico e tão puro, foi empacotado de todas as formas e distribuído em milhões de produtos.
Aquele sorriso embalado e manipulado já não era mais de verdade.
E as pessoas que foram tocadas, usando sua humana habilidade de esquecer o óbvio e ignorar o próprio coração, mesmo tendo experimentado estar diante de Deus, entenderam de retomar a rotina.
Desolado, assistindo à velocidade com que aquela loucura se espalhava, Deus, desanimado, sentou-se na escada e calou todas as suas palavras.
Os anjos, diante de um Deus magoado, recolheram todas as trombetas e envolveram Deus nos braços. Disseram a ele que outro portal se abriria e que, mais cedo ou mais tarde, os homens entenderiam e então a salvação se completaria.
Deus limitou-se a virar as costas e voltar para casa. Mas, a cada passo divino, outras crianças nasciam.
E assim o mundo seguiu criando e atropelando as verdades. Amando e matando as crianças.