domingo, julho 11, 2004

O intruso

Rua Guicurus. Centro do comércio atacadista de armarinhos de Belo Horizonte. Eixo quente dos puteiros, dos camelôs, dos trambiqueiros, dos cinemas pornô e do crack.
Putas diurnas de 15 reais, camelôs-traficantes, pessoas comuns, gigolôs, comerciantes, trabalhadores em busca de sexo. Um espetáculo esplêndido.
Um homem bêbado desafiava um golpista enquanto o intruso subia a calçada. Seu passo incerto e sem vontade, seu rosto esquálido com uma pequena cicatriz, talvez queda, talvez soco.
Ele era alheio, uma criatura semi-oculta que quase não se via. Parecia sentir-se expulso de tudo, até do bar, cuja porta lhe causou desejo e receio.
Talvez quisesse pedra, talvez nem quisesse mais nada.
Parou, olhou para o chão, não vi o que era. Olhou, olhou, abaixou-se, apanhou um “toco” de cigarro ainda aceso, quase no filtro. Um resto quase morto lhe pareceu um trago suculento.
Sentou-se lenta e debilmente encostando-se na parede, olhou para cima e me viu.
Olhou-me nos olhos, dilacerou-me a alma e, de súbito, me trouxe de volta ao mundo. Saí do transe como quem volta de um sonho estranho e então percebi-me existindo.
Eu, sendo alguém, não sabia o que fazer.
Naquele lapso, não houve nada que nos separasse. Nenhum preconceito, nenhuma aversão, nenhuma raiva, nenhuma dor, só o estranhamento.
Foi então que vi que estávamos na mesma calçada, no mesmo universo e na órbita do mesmo instante, ainda que fôssemos absolutamente estranhos.
Seu olhar não me pedia, não julgava, não temia, só olhava com assustado interesse. O meu, quis fugir.
O desconforto que senti me foi ainda mais estranho. Não sabia quem era eu, não sabia o que lhe revelar da minha imagem, não sabia o que lhe dizer do meu mundo e, na verdade, meu mundo já nem existia. Não era burguês, nem mau, nem bom, nem certo nem errado. Não conseguia condenar nem aceitar sua presença, quis ser indiferente. Desejei a aconchegante proteção da minha concepção social mesquinha, da minha pseudo-antropologia urbana.Não havia mais tempo agora, eu deveria agir.
Onde está meu mundo quando preciso? Onde estão meus sinais de casta e classe? O que eu fiz com minha armadura de indiferença e minha visão seletiva, onde está minha compaixão anestésica?
Não houve remédio, o desconcerto idiotizou meus gestos. Tornei-me fraco. Desviei os olhos como quem pede desculpas pela indiscrição. Fiquei inerte, impassível e absolutamente idiota.
Com o olhar, ele jogou por terra todas as minhas reflexões fugazes e recusou minha culpa neurótica. A humanidade estava sob nossas peles com a mesma intensidade e nenhum de nós sabia como lidar com ela. Ele e sua miséria, eu e minha riqueza.
Inútil e desnecessário, saí da sua vida. Ele não, ele ficou sentado em todos os cantos do meu pensamento, com seus olhos apáticos e curiosos, procurando alguém que eu também não via, procurando por mim.
Havia alguém em mim que se incomodava profundamente com a miséria alheia, mas quem ele era?
Até então meu pensamento se contentava em elaborar discursos e construir ideais, mas o que eu havia realizado? Nunca distribuí sopa, nunca fiz doações para campanhas do agasalho, nunca doei um quilo de alimento não perecível, nunca tomei nenhum destes entorpecentes de culpa.
Nunca me dispus a ouvir estas pessoas que sofrem, a fazer algo por elas, a transformar verbo em gesto. Sequer conseguia olhá-las nos olhos.
A verdade é uma ressaca pesada. Sou hipócrita e meu discurso é podre e oco. Fujo da realidade.

Agora, revendo a cena, compreendo mais cruamente a minha natureza e vejo uma outra dimensão dos fatos. Todo o meu inquietamento social, todo o meu desassossego humano, toda a minha culpa mesquinha teriam se acalmado se tivesse simplesmente lhe comprado um cigarro.

sábado, julho 03, 2004

Biscoitos de São João

Meu pessoal começou a chegar para a formatura.
A primeira foi a minha mãe, claro.
Na bagagem, além das quitandas de sempre,vieram encomendas muito especiais: biscoitos de são joão, bolo de mandioca e puba.
Não se tratam de especiarias feitas por encomenda ou compradas na rústica feira de sábado. São ainda mais raros. São feitos por aquelas famílias simples para receber as visitas e os parentes que sempre voltam nessa véspera do ano para a melhor das festas: a "fogueira".
Estas guloseimas de polvilho e mandioca vêm daquelas casas em que a generosidade supera a pobreza e a hospitalidade não se envergonha de ser humilde. São biscoitos assados com calor humano, temperados com amor, e bolos dosados com tradição e a sabedoria de cada descendência.
O especial nisso é que foram ganhados. Me foram ofertados como prova de gratidão por terem recebido lembranças de minha formatura e com os votos de boa sorte e sucesso.
Quatro "matulas", uma de cada casa, embrulhados com a simplicidade o cuidado peculiares àquelas mulheres.
Acho que nunca mereci uma consideração tão grande e nunca tive uma prova tão significativa de tudo o que me é mais caro naquele povo.
Estranho, tenho comido estas coisas desde criança e nunca reparei no seu paladar. Elas têm gosto de respeito, têm sabor de generosidade, cheiro de aconchego e caem muito bem com café.
Estou comendo com lágrimas nos olhos, e não vou desperdiçar nenhum farelo. Deus permita que eu esteja a altura de retribuir a nobreza deste gesto.