sexta-feira, setembro 12, 2003

O Homem simples.

Quarta-feira fui ao fórum e uma cena não me saiu da cabeça.
Estava no corredor das varas de família com minha orientadora e uma colega.
Elas discutiam qualquer coisa e eu só aguardava, iria assistir a audiência.
Me vi olhando aquelas pastas, papéis, ternos e tailler's, aqueles rostos muito decididos, aqueles sorrisos corretos, as palavras elegantes, os gestos precisos.
Fiquei feliz em pensar que por mais que eu freqüente este universo, continuo me sentindo totalmente estranho a ele. Não aquela estranheza de quem não está à vontade, e sim aquele afastamento de quem compreende mas não se entrega.
São tantas pessoas, tantos papéis, tantas horas marcadas, é como se fosse uma fábrica de palavras e a cada palavra parece ser dado um valor absurdo.

É como se as pessoas que ali circulassem achassem que o mundo realmente só existe porque elas estão lá, operando na retórica... enfim, no nada, no vazio. É como se elas enxergassem um sentido muito óbvio naquela abstração toda.
Um nada que envolve muitas vidas, que as aprisiona, decide, separa, obriga, manda fazer, enriquece, empobrece, constrói, destrói.
Deve ser um nada muito importante.

Um homem velho, não um velhinho, mas um senhor já bem vivido, negro, baixo, magro e com um óculos no rosto, roupas simples, daquela simplicidade de quem não tem como não ser simples. Com os sapatos bem maiores que seu pé, sujos da poeira de quem vem de longe, acompanhado de uma menina com seus cinco anos e de roupinhas também bastante sujas caminhou pelo corredor com um passo rápido até parar enfrente a uma das secretarias. Olhou a porta, as pessoas que estavam lá dentro, olhou o número da sala, fez que ia entrar mas parou na porta, esbarrou como quem parece bloqueado por um instinto qualquer, como que envergonhado pelas roupas que vestia, resignado, parou. Avançou com a cabeça tentando se mostrar sem ser visto, fazia um discreto sinal com as mãos tão discreto que ninguém o percebia. Tentava erguer os braços mas freava o movimento no meio, olhava para os lados, para a criança e desenrolava um papel todo dobrado que trouxera cuidadosamente instalado no bolso. Pegava no papel com as pontas dos dedos, como que temeroso.
Avançava com a cabeça e acompanhava com o tronco, meio mandingueiro até, entre o sem jeito e o risonho, com a mão posta junto ao peito conseguiu chamar a atenção da oficial que foi até a porta atendê-lo.
Era estranho vê-lo, era como se eu não quisesse que ele estivesse ali passando por todo aquele constrangimento. Ele era a representação do que todas as pessoas ali tinham esquecido: um homem comum, um cidadão. Naquele momento, para mim, era um iluminado, um ser à margem de toda aquela burocracia, que se considerava simples demais para se envolver, que não queria incomodar, e sua simplicidade o salvava.
Senti medo de me ver acorrentado a toda aquela artificialidade e chegar um dia a passar indiferente a ele como a maioria ali o fazia (ou demonstrava faze).
Era ele, ali, olhando tudo como quem se sente fora da matrix, aquela criança ainda isenta de qualquer vínculo, os dois indefesos naquele mundo de papel.
Me lembrei de Kafka em "o processo", a estória inacabada em que os personagens eram envolvidos em processos absurdos, sem razão aparente, sem começo nem fim em que não importava qualquer fato ocorrido, o que importava era o processo, a tensão, a obrigação com a justiça, o assinar papéis, comparecer, depor, enfim, submeter-se a um poder que só existe porque existe a idéia dele. Lembrei-me de 1984 do George Orwell e da Matrix.
Me senti aprisionado e tive vontade de afastá-lo dali, rasgar aquele papel e dizer vá embora, o senhor está livre, leve esta criança e ensine a ser gente de carne osso, não um estereótipo hierarquizado, uma figura a mais neste enorme elenco ... gente de verdade que passava despercebido.
Nesta hora absurda tive um desconcerto. Me senti desconfortável no mundo, mas voltei os olhos e comecei a sentir pena daquelas outras pessoas: dos ternos apertados, dos apertos de mão voláteis, dos Ilustres medíocres, dos presusunçosos estudantes, da insegurança mal disfarçada nos rostos tensos, na mascara frágil de convicção; menos daquele senhor simples e acabrunhado que me traduzia a verdade.
Os papéis de uma senhora de idade sentada a meu lado caíram, era uma mulher simples, como aquele homem, peguei os papéis e entreguei em suas mãos. Com um sorriso espontâneo ela agradeceu: _Deus te abençôe! Por seu sorriso, me senti abençoado, eu existia.

terça-feira, setembro 09, 2003

Coisas de lua

Quem viu a lua?
Saí da sala porque a lua estava a meu lado, no céu das montanhas, insistindo em ser bonita, teimando em seduzir meus olhos e escravizar meus pensamentos.
Lua doida e linda, bola branca chapada e viva no céu.
Não tenho mais dúvidas, a lua é fêmea. Talvez a fêmea mãe, talvez a matriz de todo o paradoxo humano, Lua-vênus, Deusa da beleza e da paixão. Bem e mal em conflito, lua mulher que troca de roupa, vai embora, sorri e seduz.

Lua cheia, no meu sertão, faz da noite um dia. Bom pra caçar, bom para amar. Os pescadores do cais da Bahia, a Bahia de Jorge Amado, amavam na proa dos saveiros nas noites de lua cheia. Suas mulheres, sedentas de amor, provocadas pela lua-Iemanjá, sonhavam amar seus homens nas proas dos barcos em noites de lua cheia. Porque sua luz ilumina e oculta, mostra e esconde e assim faz jogo da paixão, dúbio, secreto, misterioso, instintivo. E é isso que a lua faz, é isso que a lua é.

Quem não sente a lua? quem não percebe a lua? quem nunca quis sorrir igual criança, uivar, quem nunca quis amar...

Lua, lua, lua, seu brilho em meus olhos desliza, seu nome em meus lábios flutua...