terça-feira, outubro 07, 2003

Justiças sobrepostas.

Crianças, balas e sangue.

Ontem, segunda-feira, uma destas crianças que vendem balas em ônibus, numa disputa pelo território, agrediu um colega - ou rival, que era outra destas crianças que vendem balas em ônibus. A briga terminou com um deles caído, ensangüentado, com um corte profundo no pescoço.
A cena toda se deu no ponto de ônibus que fica exatamente ao lado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, onde trabalho.

Uma criança deu uma facada em outra criança na frente do Tribunal de Justiça por causa de algumas balas. Algumas balas. Uma criança. Facada no pescoço. Criança...

Parece tema para triller de violência, mas é a real.
Parece comum demais, cotidiano e rotineiro na maratona urbana mas não é. É terrível, que ninguém se deixe enganar.

É tão assustador, tão alarmante, de uma dimensão tão grande de medo e dor que quase chega a ser ilusivo, mas é real demais.

Me perdoem por ser tão repetitivo, me desculpem o lugar-comum do tema mas é isso mesmo que me impressiona e amedronta. Medo de tornar tudo isso comum.


Justiças sobrepostas.

Não é novidade nem nenhum segredo que a exclusão econômica promove exclusão social e que à margem desta sociedade criou-se outra. Com indivíduos de menos poder aquisitivo, com menos eficácia das instituições de educação, maior dificuldade de acesso à saúde, enfim, menos cidadania.

E não é novo, também, que nesta sub-sociedade, resultado óbvio da lógica econômica, tenha-se adotado todo um conjunto moral bastante diferenciado dos nossos padrões seculares.

Valores diferentes, meios, regras e perspectivas completamente distintas. Um só homem.

Nestes meios, a violência é usual. Não só para o criminoso que visa resultado econômico, mas para todos os que habitam o meio: o trabalhador que sustenta a família, a lavadeira que alimenta os filhos, enfim. A violência em determinados momentos chega a ser ferramenta de sobrevivência, já que o código de ética é diferente e já que ali não é fácil se chegar à justiça e a polícia parece ter uma única função: proteger o lado de cá. O tráfico por perto, o acesso às armas mais fácil que aos livros, o preconceito pela condição. A vida se impõe, é preciso sobreviver pelo ou menos até sair dali e até lá que se aplique a "lei do cão" ou se é vitimado por ela

Por essas e outras é que se chega ao ponto de uma criança matar outra criança. Elas conheceram violência, aprenderam violência, viveram em meio à violência e aprenderam que daquela forma conseguiriam fazer valer seus direitos no mundo em que viviam.

Quanta ironia naquele fato. Duas crianças, símbolo universal da esperança, demonstravam exercer a justiça da sua sociedade, a justiça que aprenderam a 10 metros de onde a nossa justiça concentra todo a sua simbologia.

Duas justiças sobrepostas, duas realidades contrapostas.

Quanta injustiça, quanta tristeza.



Este post não é para ser "bonitinho", mas irei consertá-lo amanhã, quando estiver menos cansado e menos impressionado.

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