quarta-feira, janeiro 04, 2006

Terra

Estive lá.
Pisei na terra.
Revi os vivos e os mortos. Vi a mim mesmo, criança, quando ainda tinha medo e fascínio com aquilo que me era novo: o mundo.
Perdi-me no tempo e segui andando a esmo confundindo o caminhar do tempo de agora com a memória do eu-menino, onde nasci, onde moram meus pais, onde todos os meus ancestrais estão enterrados.
Eu me vi seguindo os passos de meu avô, os passos largos e ritmados do alazão montado por seu Augusto, debaixo do chapéu “três X” e enrolado em uma capa “colonial” que cobria toda a garupa do animal.
Era ele, o meu avô, o homem que tinha tempo de ouvir um menino. Eu era o menino que gostava de ouvir o homem que contava estórias de um tempo que não era o meu. Um homem que tinha um furo no queixo, que debochava da seriedade dos outros homens, meu avô.
Senti o frio deste dia distante, quando andava sobre um cavalo que pateava cauteloso na lama fina da estrada, e sob uma neblina de gelar os ossos. Era eu, adolescente, seguindo os passos de Vovô Augusto em direção à sede do seu pedaço de terra naquele sertão de meu Deus.
Era eu aprendendo o desconforto e o prazer de cavalgar pelo mundo, de se deslocar daquela forma tão primitiva e verdadeira. A honestidade de respeitar o ritmo do tempo, de alçar cada passo, movendo cada músculo e pagando, com esforço, cada palmo do caminho.
Ali as lições não eram faladas, eram vividas. E todo o desassossego da alma humana se resumia a um cavalgar lento, contra a vontade do tempo e contra toda precaução.
Lá as estradas eram longas, tortuosas e perigosas. Lá estávamos à mercê da natureza.
Aprendi, na passividade do rosto do velho Augusto, que sempre há algo a fazer e que a vida nos pretende sérios para carregar os fardos e fortes para transcender a dor. Aprendi que dois homens andando juntos estão a um só tempo solitários com suas vidas e solidários no caminhar.
Era eu aprendendo que a vida, ali, se dividia em uma, duas, três; porque eu, sendo filho de meu pai, filho do meu avô, era uma coisa só, três elos em um, e já era a promessa de continuidade, sina, saga e destino.
Vovô Augusto guiava os passos porque sabia o caminho e o ritmo que a vida impõe. Eu seguia atrás, calado e atento. Não haviam palavras que se acomodassem ao espírito nem felicidade que se aconchegasse à alma atordoada pela neblina e pelo frio.
Enquanto rompíamos os sons da chuva na terra e recebíamos o calor vivo do suor dos animais, éramos pura concordância. Enquanto estive ali no lugar de meu pai, vi meu filho me seguindo, e logo vi meu neto, como aprendiz daquele que aprendeu comigo.
Eu era a última mão viva da minha tríade, e neste momento via-me de longe, sendo, a um só tempo: pai, filho e avô.
Naqueles passos, eu vi minha dinastia e me senti feliz. Vi o pioneiro, vi seus gestos e sua força, e o caminho já não importava mais.
Agora era meu pai quem guiava o caminho e meu avô, neste então, já não vivia mais. E eu já tinha a ciência do caminho, o que aprendia agora era a coragem com que deveria guiá-lo, a consciência do controle, a sabedoria de ser livre e senhor das rotas que a vida oferece.
No meu rosto já estavam esculpidos a saudade da perda, a seriedade do trabalho e as cicatrizes de paixão. E eu tinha tão poucos anos.
O tempo seguiu sua linha e agora meu pai era o último elo vivo, e logo seria eu. Mas a certeza da morte não me trazia dor, só uma resignação muda.
Senti-me pronto a olhar para frente, senti-me apto a gerar um filho e continuar a tarefa de meus ancestrais.
Aquele chão é casa de meu pai e do pai de meu pai. É onde brotaram a força e a fibra que compõe minha essência, é onde meu passado, presente e futuro se fundem de forma misteriosa e bonita; é onde minhas lágrimas me trazem conforto e maturidade, onde sou raiz.
Pisando naquela terra, tive a certeza de que sempre voltaria, e um dia traria meu filho, e que o guiaria na cavalgada muda, para que aprendesse também o verdadeiro sentido da vida.

4 comentários:

Anônimo disse...

calaria se houvesse outra forma, a não ser essa, de mostrar o que senti lendo esse texto. fiquei arrepiada. lindas as palavras e lindo o sentimento de orgulho, amor e gratidão. Meu bisavô chamava Augusto. Não o conheci, mas sempre vi na foto da sala da casa de minha avó, um homem forte de quem eu podia me orgulhar.

Felicidade, Uri.

beijos!

Anônimo disse...

A visita a sua terra te fez um bem danado,né?
Bjus!

Anônimo disse...

Que narrativa delicada e sensível, que bela memória a se preservar!! A consciência da passagem implacável do tempo e de laços que ficam para a eternidade. Bjos p/ vc!

Anônimo disse...

U-RI!!... meu Deus!! achei que ia ver fotos de lutas, viagem de bicicleta, qualquer coisa de concurso, mas juro que não sabia que vc. escrevia bem assim. Tô impressionada mesmo. Um beijo pra você... vou passar a vir aqui sempre.