sexta-feira, janeiro 09, 2004

Terra seca, sementes velhas.

Toda noite tinha um sonho, o mesmo sonho.
Batia léguas até desandar num emaranhado de pano, linha e pau. Uma rede estranha trançada com linhão e fita vermelha, agarrado em taliscas de um limoeiro seco. Um pau espinhento, como que agourando qualquer coisa em volta.
Era só ele ali, só ele se prendia à rede, aos espinhos, ao pau e à terra.
Só restara ele, é verdade. Dos sabidos e dos bestas, das meninas e dos machos, dos fortes e dos fracos, dos doze filhos de seu Sebastião e dona Flora, dos que morreram matado e nascido, dos sete que restaram, somente ele. Prá cuidar das terras, plantar maniva e caiar a casa. Prá pegar, na cidade, a "aposentação" dos velhos, carrear os bodes prá feira, cuidar da farinha e fumar na porta da casa, vendo o sol se ir numa tarde amena, depois de ter castigado a terra dura e acochado as raízes das plantas.
Sabia que o sonho sempe começava com ele saindo em busca do Jequitinhonha, légua e meia da casinha velha, com vara, anzol e balde. O céu então ficava cinza da cor dos lajedos e no nem-tarde-nem-noite de chuva, sua visão se turvava, era então que o vulto aparecia de longe e, se tornava o único ponto visível, o único rumo lógico. Eram os panos balançando no vento de chuva, era a teia de pano-de-saco-de-farinha embandeirando a galhada seca no pleno sertão sedento.
Era ele preso ali, era ele compreendendo que sua vida ia embora, seus braços e pernas atrelados ao mal-agouro daquela planta morta e má. Sentia que eram suas as raízes encravadas na terra e que era ele próprio quem estava cheio de espinhos e o mesmo ele quem mau-olhava e prendia qualquer esperança de ser linha, e trançar qualquer destino, de ser pano e revoar com a ventania.

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