Adiei um pouco a minha volta.
Minha casa, vazia, ainda representava algo a ser superado. Não mais uma barreira, mas fragmentos do que um dia o foi.
Aos poucos fui voltando. E cada vez que vinha limpar, arrumar ou guardar, senti que lidava com os resíduos daquilo que durante tanto tempo me fizera sofrer sempre demasiadamente: eu mesmo.
Entre tirar o pó e organizar armários, inaugurava algo totalmente novo em mim, uma nova percepção do que sou e do que é a vida. Talvez tenha iniciado uma nova etapa, ou, quem sabe, apenas começado a abrir os olhos.
É como se houvesse, enfim, compreendido, que a vida tem sentido único e que os fatos passados somente existiram ali, naquele determinado ponto em que lhes foi reservado acontecer e desatar toda a sua cadeia de consequências. E não se pode ignorar as consequências dos fatos, sob pena de fechar os olhos para o que é real.
No quarto dia, enfim, trouxe a bagagem e, após um ano inteiro fora, tranquei por dentro a porta da frente do velho duzentos e dois.
Não era um retorno, pelo que senti, era um novo começo.
Nos momentos em que se faz as pazes com o tempo, é possível perceber com mais clareza as suas virtudes. Hoje entendo todo regresso como um ponto de partida.
Também a mudança me ensinou coisas novas. A primeira delas é que toda mudança física implica um convite a uma mudança psicológica; a segunda é que reduzir a bagagem é uma atitude necessária e venho aprendendo a combater a tendência inconsciente de acumular coisas e pensamentos desnecessários.
Tenho objetos demais, memórias demais, receios demais, mágoas demais, orgulho em excesso... mas agora tenho a consciência disso e, enxergando melhor, posso definir com mais clareza o que há de ser retirado.
O primeiro descarte já ocorreu. Joguei fora aquela pressa de perfeição. Tratarei este processo sem exagero ou urgência, dando a cada etapa, seu necessário tempo.
Levarei, literalmente, toda a minha vida e reelaborarei este projeto quantas vezes for preciso.
Aprender a lidar consigo mesmo demanda tempo e paciência.
Uma vez em minha casa, sozinho, não me instalei de imediato no meu antigo quarto. Também a ele, voltei aos poucos, atribuindo, a cada espaço, uma nova função, como se jamais houvesse estado aqui.
Ocupar a casa me trouxe uma sensação surpreendentemente boa. É como se, só agora, houvesse assumido as rédeas da minha vida, da minha verdadeira vida.
Um dia depois da última etapa da grande faxina na casa, levantei sentindo-me leve, corajoso e humilde. Olhei no espelho e vi um homem. Brotou em meu rosto, um sorriso mais calmo, reflexo de uma felicidade mais branda.
Foi preciso tanta coisa para chegar até aqui, tantos castelos de areia tiveram que ruir, tantas lágrimas foram necessárias para diluir minhas certezas.
Há entulho do concreto das minhas verdades espalhado em cada pequeno espaço da minha compreensão.
Levará a vida toda, eu sei, para compreender o que realmente sou, mas por ora tem me nutrido essa reconfortante sensação de esperança.
Por enquanto, sou senhor da minha casa, responsável por mim mesmo, condutor da minha vida.
Assim, mais leve, a caminhada fica mais fácil. Sempre adiante.
6 comentários:
"Não era um retorno (...) era um novo começo"
"Orgulho em excesso"
"Tantos castelos de areia tiveram de ruir"
Parabéns pelo homem novo!Sucesso na sua nova estrada.
Que ela te leve a novas noites de lua cheia, novos passeios com música, novas receitas de arroz com alho, novo axé e a novas orações vividas!
Bjs
Neguinha!
Dá uma sensação muito boa este post.
Sensação de uma pessoa crescendo, no verdadeiro sentido da palavra.
beijo, querido.
Ei, Uri!
Estou com blog novo, o endereço é quase igual mas é diferente rs. O Mirada continua no ar, mas devo ficar mais neste por enquanto.
Será bem-vindo quando quiser: Closet (http://bbiapontes.blogspot.com )
beijos,
Bia
Esse "homem novo" é o velho amigo que reencontrei!
Ao ler seus textos vi-te dizendo tudo isso!
abraço
Toc, toc!
Alguém aí???
Uri querido, adorei conhecer o poeta dentro de você, o reflexivo fluir das palavras que V~em de dentro. beijos, Cema
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